sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

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Educação inclusiva: direito inquestionável
Martinha Clarete Dutra dos Santos – Coordenadora geral da Política de Inclusão da Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação; conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência – CONADE – 2006/2008; licenciada em Letras – Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Educação Especial – UNIFIL. Especialista em Administração, Supervisão e Orientação Educacional – UNOPAR. Mestre em Educação pela Universidade Cidade de São Paulo.
E-mail: martinha.santos@mec.gov.br

Caro leitor e leitora, venho aqui opinar a respeito da educação da pessoa com deficiência. Para iniciar esta exposição, parto do princípio geral de que a inclusão social da pessoa com deficiência é uma questão de políticas públicas e ação bilateral, onde tanto a sociedade quanto o sujeito com deficiência constróem juntos as relações sociais.
Neste contexto, vale lembrar que o histórico de submissão e tutela vivido pelas pessoas com deficiência interfere, preponderantemente, na conquista do tripé: independência, autonomia e emancipação, base do paradigma da inclusão social.
Partindo deste pressuposto, é fácil inferir que este segmento da população não pode prescindir de educação e trabalho neste processo de construção do novo paradigma. Todavia, não me refiro a quaisquer modelos de educação. Falo, efetivamente, de uma educação inclusiva, sem restrições ou condicionantes. Em que me fundamento para defender esta opinião? Simplesmente na experiência de vida de uma aluna com deficiência que sempre esteve inclusa no sistema público de ensino regular, desde um tempo em que a palavra inclusão não se relacionava com o universo da escola. Falo também do lugar da educadora com deficiência que trabalha em escolas públicas e particulares regulares, contrariando a tese de que pessoas com deficiência visual devem ensinar apenas aos de mesma condição sensorial. Além disso, não posso omitir minha condição de militante do movimento social de defesa de direitos da pessoa com deficiência e profissional do ensino superior, à disposição do Ministério da Educação.
Nesta condição, desconheço argumentos capazes de refutar a legitimidade do direito inquestionável de todo cidadão, a uma educação inclusiva.
Em 1983, o Programa Mundial de Ação Relativo às Pessoas com Deficiência preceitua que a educação das pessoas com deficiência deve ocorrer no sistema escolar comum e que as medidas para tal efeito devem ser incorporadas no processo de planejamento geral e na estrutura administrativa de qualquer sociedade.
O direito da pessoa com deficiência à educação comum aparece implícito também na Declaração Mundial de Educação para Todos, aprovada pela ONU, em 1990, que inspirou o Plano Decenal de Educação para Todos.
A Declaração de Salamanca, em 1994, aborda os conceitos de “educação inclusiva”, “abordagem de educação inclusiva”, “classes inclusivas”, “escolas inclusivas”, “princípios de inclusão”, “escolaridade inclusiva”, “políticas educacionais inclusivas”, “provisão inclusiva às necessidades especiais”, “inclusão na educação e no emprego”, e “sociedade inclusiva”.
Dois anos depois, em 1996, o documento Normas sobre a Equiparação de Oportunidades para Pessoas com Deficiência afirma:
1. As autoridades devem garantir que a educação de pessoas com deficiência seja uma parte integrante do planejamento educacional, do desenvolvimento de currículo e da organização escolar;
2. A educação em escolas comuns propõe a provisão de intérpretes e outros serviços de apoio adequados. Serviços adequados de acessibilidade e de apoio, projetados para atender às necessidades de pessoas com diferentes deficiências devem ser prestados.
A Convenção da Guatemala, validada pelo Decreto Legislativo n.º 198, de 13 de junho de 2001, e promulgada pelo Decreto n.º 3.956, de 8 de outubro de 2001, da Presidência da República, define a discriminação como “[...]toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais.” (art.1º).
O acesso ao ensino fundamental é um direito humano indisponível, por isso, as pessoas com deficiência, em idade de freqüentá-lo, não podem ser privadas dele. Assim, toda vez que não se admitem alunos com deficiência em classes comuns fere-se o disposto na Convenção da Guatemala.
A simples inserção de alunos com deficiência, sem apoio ou assistência nos sistemas regulares de ensino, pode redundar em fracasso, na medida em que estes sistemas apresentam problemas graves de qualidade, expressos pelos altos níveis de repetência, evasão e baixos níveis de aprendizagem. Educação inclusiva pressupõe aprimoramento do sistema de ensino. A prática pedagógica e a gestão escolar carecem de contínuo aperfeiçoamento.
Segundo Berger e Luckman, as instituições sociais, incluindo aí as escolas, são produtos históricos da atividade humana sendo impossível compreendê-las adequadamente sem entender o processo histórico que as produziu. Entender o processo histórico da educação implica investigar a ordem econômica, política e social na qual está inserida. O confronto dos fenômenos socioculturais fará emergir uma realidade concreta, socialmente definida.
Assim, a segregação escolar da pessoa com deficiência, produzida em um determinado momento histórico, cumpriu seu papel de agente determinado e determinante na história deste segmento. Hoje, impõem-se modificações estruturais nos sistemas escolares a fim de consolidar o caráter universal e plural da escola que se deseja construir em nosso tempo. É nessa direção que políticas nacionais e internacionais vêm sendo proclamadas para combater a segregação escolar e edificar, os alicerces de uma escola para todos.
Em 9 de junho de 2008, aconteceu a ratificação da convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com equivalência constitucional. Este documento internacional é o resultado de dez anos de intensa discussão e reflexão acerca dos conceitos e práticas de inclusão por todos os Estados Parte da Organização das Nações Unidas. No Brasil, houve forte mobilização pela ratificação como emenda à Constituição Federal. No artigo 24, em seu primeiro parágrafo, assegura-se a educação inclusiva: “Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para realizar este direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes deverão assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida[...]” (ONU, 2006).
Nesta perspectiva, a política de inclusão em desenvolvimento pela Secretaria de Educação Especial (SEESP) do Ministério da Educação, é uma resposta afirmativa às diretrizes aprovadas durante a 1ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, ocorrida em maio de 2006, em Brasília. As ações da SEESP simbolizam o compromisso do governo federal com nosso segmento social. A formação docente e de gestores públicos se desenvolve a partir do ideal da educação inclusiva. Importantes investimentos na educação da pessoa com deficiência devem ser destacados. Chamo a atenção para um deles: computadores portáteis fazem parte do material escolar dos alunos com deficiência visual das escolas públicas de todo o País. Este é um investimento que não apenas democratiza a tecnologia disponível. Sobretudo, promove a autonomia, a independência e a emancipação do estudante com deficiência visual. O computador equipado com programa que permite ao usuário com deficiência visual, acesso ao mundo da leitura e escrita comum, é uma poderosa ferramenta no processo de desenvolvimento pessoal, social, educacional e profissional dessas pessoas. De posse deste equipamento, o aluno terá a sua disposição, muito mais do que um ledor de livros didáticos. Ganha um precioso aliado para sua interação com o mundo dos “videntes”. Esta é uma política pública, verdadeiramente, inclusivista. Um exemplo ilustrativo da importância de uma política de Estado, para a vida concreta das pessoas com deficiência. É nelas que devemos nos focar no momento da definição e elaboração das políticas.
Pensar uma escola capaz de atender a todos com qualidade e respeito às diferenças é um desafio a ser superado pela sociedade brasileira. Construir uma cultura de valorização da diversidade exige de quem ocupa espaços de tomada de decisão, coragem e compromisso. Coragem de enfrentar “verdades cristalizadas” e grupos politicamente, edificados sobre o processo de segregação escolar e social da pessoa com deficiência. Compromisso com a implementação dos documentos internacionais ratificados pelo Brasil, relativos ao direito à educação inclusiva e, por fim, contribuir, efetivamente, para uma profunda transformação social.
A educação nunca esteve tão pautada nos espaços sociais como nesses últimos anos. Os conselhos de defesa de direitos da pessoa com deficiência, juntamente com outros órgãos de promoção de direitos humanos e combate à discriminação, têm realizado conferências municipais, estaduais e nacionais, seminários e fóruns de debates sobre a realidade e os desafios enfrentados por tais cidadãos. A educação vem sendo um dos temas mais discutidos. Este é um sintoma transparente de que esta deixa de ser matéria exclusiva de especialistas e ganha domínio público. Os sujeitos que antes, eram apenas pacientes de uma ação imposta, conforme a vontade e determinação de seus tutores, agora, protagonizam sua própria história, apropriam-se de um debate que lhes diz respeito e contribuem decisivamente para a mudança de um cenário aparentemente, rígido. A inclusão escolar é um caminho que se faz caminhando. Quem discursa em favor de que primeiro pavimentamos a estrada e, depois, aprendemos a trafegar por ela, realmente, deseja escamotear o processo e atrasar o curso da história.
A inclusão escolar se faz na escola com a participação dos seus atores protagonistas.

“ O êxito consiste em ter êxito,
Não em ter situação de êxito.
Condição de palácio toda terra larga tem.
Mas, onde estará o palácio se não o construirmos? ”
Fernando Pessoa.

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