sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Destaque

DESTAQUE – Páginas 7 a 16

DESENVOLVER A EDUCAÇÃO INCLUSIVA: Dimensões do desenvolvimento profissional

David Rodrigues – Doutor em Ciências da Motricidade Humana na área de Educação Especial e Reabilitação (UTL/FMH), professor da Universidade Técnica de Lisboa, e coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva (www.fmh.url.pt/feei)
e-mail: drodrigues@fmh.utl.pt

Resumo
A disseminação do modelo de Educação Inclusiva, nomeadamente pela inclusão de alunos com condições de deficiência na escola regular, origina novos desafios para a formação de professores. Já não se trata de formar professores para alunos que são educados num modelo segregado, mas, sim, professores que são capazes de trabalhar com eficácia com turmas assumidamente heterogêneas. Para isto é necessário um novo olhar sobre os saberes, as competências e as atitudes que são necessárias para se trabalhar com classes inclusivas. Realça-se, ainda, a importância das estratégias de formação como inseparáveis do processo de formação: a inovação e a valorização da diferença são partes essenciais da formação de professores.
Palavras-chave: formação de professores, educação inclusiva.

Abstract
The growing process of including pupils with special educational needs, in the regular schools, became a new challenge for teacher’s education. This is a new challenge considering that the present aim is not “Special Education” in “Special Schools” but to attend in the regular schools the heterogeneous needs of the population. It is necessary to train teacher to present a wide range of competencies to work in heterogeneous classes. This implies a new “look” over the knowledge, the competencies and the attitudes that teachers need to be efficient in Inclusive Education. In this paper we present a reflective analysis about which kind of teacher education – including contents, experiences and strategies – is needed to provide the teacher with the skills he/she needs to act in Inclusive schools.
Key words: teacher education, inclusive education.

Introdução

A formação de professores encontra-se, hoje, em profundas mudanças tanto do ponto de vista de conceitos e valores como de práticas. A este fato, não é estranho que as competências que se esperam que o professor domine se revelem cada vez mais complexas e diversificadas. Espera-se que o professor seja competente num largo espectro de domínios que vão desde o conhecimento científico do que ensina à sua aplicação psicopedagógica, bem como em metodologias de ensino, de animação de grupos, atenção à diversidade etc. Isto sem considerar as grandes expectativas que existem sobre o que o professor deve promover no âmbito educacional mais geral, tal como a educação para a cidadania, educação cívica, sexual, comunitária, entre outras. Alguns autores têm, por isso, denominado a missão do professor na escola contemporânea como uma “missão impossível” (BEN-PERETZ, 2001).
Poder-se-ia pensar que este problema se resolveria com a adição de mais conteúdos à formação e, eventualmente, com a extensão dos currículos de formação. Mas não parece ser esta, certamente, a solução. Não é a simples aquisição de mais conhecimentos de índole teórica que fará o professor mais capaz de responder aos numerosos desafios que enfrenta. Isto porque dado o caráter multifacetado e autonômico da profissão de professor, esta implica modelos diversificados de formação, modelos que não se podem centrar na simples aquisição de saberes teóricos.
Deve-se, assim, proporcionar ao professor um conjunto de experiências que não só lhe revelem novas perspectivas teóricas sobre o conhecimento (perspectiva acadêmica), mas que também o impliquem em situações empíricas que lhe permitam aplicar estes conhecimentos num contexto real (perspectiva profissional).
Este caráter autonômico refere-se ao professor como “gestor local do currículo” (CAMPOS, 2000), salientando que o professor não é um técnico (no sentido em que aplica “técnicas” adequadas) nem um funcionário (no sentido em que executa estritamente indicações oriundas de uma cadeia hierárquica em que integra). A profissão de professor envolve um grande número de decisões que tradicionalmente são da sua responsabilidade e que lhe outorgam um elevado grau de autonomia no quotidiano da sua profissão. Por isso, é tão complexa a profissão e a sua respectiva formação e se torna claro o motivo pelo qual resulta insuficiente um simples incremento de formação teórica.
Uma outra mudança significativa refere-se à forma como se alterou a relação que se estabelece entre o professor e a informação. Proporcionar informação era, tradicionalmente, uma das componentes principais do processo educativo. Mas, a profissão docente deixou de estar tão intimamente comprometida com um ensino baseado na informação. O Livro Branco, publicado pela União Européia, em 1995, sobre a “Sociedade Cognitiva” aponta para o caráter imperioso de transformar em conhecimento toda a plêiade de dados e informações que nos rodeiam, num processo renovado de assimilação, com vista a responder à globalização e à necessidade de se criar novos saberes (CASPAR, 2007).
É certo que, pelo menos teoricamente, todos os saberes do mundo estão ao alcance do cidadão comum (e isto inclui certamente os alunos). Dizemos teoricamente, porque, na verdade, existem informações que não são disponibilizadas ou que são disponibilizadas, mas pouco realçadas, ou mesmo disponibilizadas por vieses envoltos em critérios de verdade. Também não podemos ignorar que muito se fala mas também muito se cala: a informação disponível na rádio, televisão, internet, bases de dados etc. são representações da realidade e que, por isso mesmo, necessitam ser assimiladas, interpretadas, re-interpretadas, contextualizadas. O papel do professor mudou: de um transmissor de informação, ele passou a ser um facilitador do processo de aquisição de conhecimento. Este procedimento implica que para que a informação se transforme em conhecimento precisa ser contextualizada, refletida e, muitas vezes, completada. Esta é uma nova competência do professor e da escola.
Tomando como exemplo uma dilatada experiência na formação de professores na área das NEE, tanto no campo graduado como pós-graduado, vamos discutir os modelos e estratégias que nos parecem mais adequados para preparar os professores para os desafios da Educação Inclusiva.
1. Novos desafios

Os desafios de adequação dos modelos de formação às novas necessidades podem, talvez, ser sintetizados em cinco pontos principais:
1. Face ao período da vida profissional em que esta formação tem lugar. Tradicionalmente, a componente essencial da formação passava-se em uma fase pré-profissional num período que se convencionou chamar de “formação inicial”. Se pensarmos na profissão docente como uma das que se encontra mais exposta a mudanças e a compararmos com profissões semelhantes, concluímos que para poder fazer face ao rápido avanço do conhecimento que lhe é essencial, necessita adaptar modelos de formação em serviço ou permanente. Sabemos que esta mudança paradigmática não é fácil. Foi atribuído durante muito tempo à formação inicial o estatuto de “necessária e suficiente”. Hoje, busca-se que os professores se comprometam em processos de formação que se identificam com um modelo de “desenvolvimento profissional”, entendido como um processo contínuo, e durante toda a vida profissional que conduza o professor a tornar-se mais competente na resolução dos problemas com que se defronta no seu dia-a-dia (AINSCOW, 2007). Um exemplo interessante é a organização de formação que se verifica na Europa (Escócia). Trata-se de um modelo de formação em que o professor só é considerado formado se, após quatro anos de educação superior, tiver sido aprovado em dois anos de exercício profissional supervisionado. Não se trata de um modelo reciclado dos antigos “estágios pedagógicos”, mas de um modelo que visa habituar o professor a ver a sua profissão como sendo incompleta se for solitária e que, por isso, o alerta para a importância do trabalho cooperativo e da supervisão.
2. O papel que desempenha o trabalho cooperativo nas comunidades de professores é outro dos desafios atuais. O professor tem tendência para considerar os seus sucessos e insucessos como feitos pessoais. O planejamento, a programação, as estratégias, a gestão da sala de aula, a avaliação, entre outros, são processos que cada professor tem por tradição reservar para si. Ora a crescente complexidade dos programas, a heterogeneidade do comportamento dos alunos, das respostas institucionais das novas áreas curriculares etc. implicam que a profissão docente não seja desempenhada por professores sozinhos, mas por professores que trabalhem cooperativamente com colegas, outros profissionais, famílias. Têm sido experimentadas estratégias bem sucedidas de “redes de professores” (PARRILLA, 2000) que mostram a sua eficácia no fortalecimento das competências dos professores e na qualidade do ensino em geral.
3. Um outro desafio relaciona-se com a conciliação entre a teoria e as aptidões necessárias para atuar em Educação (FREITAS, 2006). Do lado da teoria temos a investigação, o conhecimento pedagógico e outros saberes; do lado das aptidões temos a experiência e o conhecimento específico da matéria a lecionar (HEGARTY, 2007). O que poderá ligar estes dois mundos que parecem tão próximos mas se encontram freqüentemente separados? Segundo Hegarty (op. cit.), o fator que pode ligar estes dois mundos é uma compreensão alargada da causa pela qual um aluno particular tem dificuldades. Estas dificuldades não podem ser só resolvidas pela teoria nem só pela experiência: necessitam sobretudo de um discernimento, de uma perspicácia (insight) do professor. Esta perspicácia, esta capacidade de conjugar o conjunto de conhecimentos e de experiência que se dispõe para tomar uma decisão adequada em relação à aprendizagem de um aluno com dificuldades, é um dos fatores que não pode deixar de ser enfatizado e desenvolvido em modelos de formação de professores.
4. Um outro desafio é o do desenvolvimento da Educação Inclusiva (EI). Cada vez que se fala de Educação Inclusiva é preciso distinguir qual o conceito que dela usamos. Usaremos o termo EI como um modelo educacional que promove a educação conjunta de todos os alunos independentemente das suas capacidades ou estatuto sócio-econômico. A EI tem por objetivo alterar as práticas tradicionais, removendo as barreiras à aprendizagem e valorizando as diferenças dos alunos. A Educação Inclusiva organiza e promove um conjunto de valores e práticas que procuram responder a uma situação existente e problemática de insucesso, seleção precoce ou abandono escolar. Promove a heterogeneidade em lugar da homogeneidade, a construção de saberes em lugar da sua mera transmissão, a promoção do sucesso para todos em lugar da seleção dos academicamente mais aptos e a cooperação em lugar da competição.
Na verdade, a escola não foi pensada para atender a heterogeneidade. Toda a estrutura e funcionamento da escola regular é mais confortável ao considerar a homogeneidade do que com a diferença entre os alunos. Mas o que é certo é que a heterogeneidade é cada vez maior nas nossas escolas e a premência de lhe dar uma resposta de sucesso é também cada vez mais inadiável. Em sociedades que prezam o seu desenvolvimento não é aceitável que existam alunos que abandonem a escola ou que, nela permanecendo, não obtenham sucesso. Na perspectiva da promoção da Educação Inclusiva existem novos recursos e novos olhares sobre os recursos existentes, que é necessário desenvolver. Mas, por certo que o professor com todo o conjunto de competências e experiências que tem é certamente o principal recurso em que a Educação Inclusiva se pode apoiar (FERREIRA, 2006). Portanto, para promover a Educação Inclusiva a questão não é, muitas vezes, a de encontrar mais pessoas ou pessoas com perfis profissionais diferentes, não é, talvez, encontrar novos recursos ou recursos diferentes; é, sobretudo, por meio de estratégias reflexivas, do trabalho cooperativo lançar um novo olhar sobre as práticas docentes, sobre a equipe e os recursos que a escola dispõe. Como diz Ainscow (op. cit.), as escolas e os professores sabem mais do que pensam que sabem. Aqui, como sempre, é importante reconceptualizar as finalidades da Educação.
Precisamos, assim, de um professor que, para além das áreas conteudísticas habituais de formação possa, ainda, conhecer e desenvolver um conjunto de práticas que permita aos alunos alcançar o sucesso, isto é, atingirem o limite superior das suas capacidades. Como se depreende, a resposta a este desafio da Educação Inclusiva parece ser algo que deveria estar disseminado, embutido em todas as matérias de formação. Será possível ensinar Psicologia Educacional sem referir e estudar os alunos diferentes pela precocidade, agilidade ou dificuldade no seu processo de aprendizagem? Será possível ensinar Metodologias de Intervenção sem mencionar como se ensina uma criança com problemas lingüísticos? Será possível ensinar Desenvolvimento Curricular sem fazer uma extensa referência às formas que podem tornar mais dúctil e mais flexível o currículo? Parece difícil responder afirmativamente a qualquer uma destas perguntas. A formação inicial de professores com relação à inclusão deveria toda ela ser feita contemplando em cada disciplina da formação conteúdos que pudessem conduzir a uma atuação inclusiva. Conhece-se o argumento que mais impede este modelo: nem todos os formadores sabem como lecionar nas suas áreas disciplinares estes conteúdos. E a questão é: se não sabem, vamos encarar esta situação de modo a que aprendam, dado que esta falta de competência dos formadores poderá criar graves problemas para o sucesso dos alunos. Não podemos encarar os formadores como “completos”, mas como profissionais em aprendizagem. Até que se possa chegar a um modelo em que a formação esteja disseminada em todas as áreas curriculares, vamos tendo nos cursos de formação inicial de professores disciplinas com o título de “Educação Especial”, ou “Necessidades Educativas Especiais”, ou outras. Temos, assim, um currículo de formação para os alunos “normais” e uma disciplina para alunos “especiais” o que, sem dúvida, não é uma contribuição à partida para a criação de ambientes inclusivos.
5. Um outro desafio ainda é como se podem interligar os diferentes níveis de formação. Em muitos sistemas educativos existem lugares específicos para professores cuja função é apoiar a aprendizagem de alunos com dificuldades. Esses professores podem designar-se como “Coordenadores de Necessidades Educativas Especiais” (“Special Educational Needs Coordinator”, como, por exemplo, é no Reino Unido) ou por “Professores de Métodos e Técnicas” (Canadá). Em 2006 foi criado em Portugal um quadro de “Professores de Educação Especial”, cuja função é a de apoiar a aprendizagem de alunos que tenham uma condição de deficiência identificada através da aplicação da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), elaborada pela Organização Mundial de Saúde. O quadro de apoio e de delimitação do tipo de apoio e de quem pode usufruir desse apoio é um assunto de discussão pertinente (LIMA-RODRIGUES, 2007). Será que uma classificação deste tipo é adequada para identificar e planejar a intervenção de alunos com deficiência? Por outro lado, só os alunos com deficiências têm direito a um atendimento especializado? Quais são as competências dos professores que se encontram nas escolas com a função específica de apoiar alunos com dificuldades ou com deficiências? Em que âmbito devem exercer as suas ações? Como se ligam estes níveis de ação com os níveis exercidos pelos professores não especializados? Muitas dessas questões são muito presentes em Portugal.
Pensamos que existem três dimensões de formação que devem ser consideradas para capacitar os professores no apoio à Educação Inclusiva tanto no âmbito de especialização como nível generalista: os saberes, as competências e as atitudes.

2. Dimensão dos saberes

A dimensão dos saberes refere-se ao conjunto de conhecimentos de índole mais teórica que fundamentam as opções de intervenção. Estes conhecimentos vão desde aspectos mais diretamente teóricos, tais como o contacto com o pensamento e a teorização de diferentes autores, até (e sobretudo) trabalhos de investigação feitos em contextos reais que possam fundamentar a adoção de determinadas opções metodológicas.
No que respeita à Educação Inclusiva, esta dimensão de saberes envolve o conhecimento das características de desenvolvimento e de aprendizagem de alunos com condições não habituais. Envolve certamente a caracterização pedagógica destas condições não habituais de desenvolvimento. Tradicionalmente é dada uma grande ênfase ao estudo das condições de deficiência nomeadamente à etiologia e à patologia em termos clínicos. Precisamos, pelo contrário, reforçar o olhar educacional para as dificuldades encaradas sob o ponto de vista educacional; isto é, conhecer como se avalia, como se planeja, como se desenvolve um processo educacional e de aprendizagem em alunos com dificuldades ou com deficiências que, se não forem enquadradas, poderão influenciar a plena participação no processo educativo. Torna-se importante que o próprio modelo em que estes processos são estudados seja um modelo de inspiração educacional e não clínica. São conhecidos os traços distintivos de um e outro modelo: o modelo clínico mais centrado numa aproximação do “caso”, do seu diagnóstico, de prescrição a adotar em forma de um programa ou de um tratamento; o modelo educacional que mais se aproxima da concepção da aprendizagem como um processo, dos seus diferentes condicionantes, caracterizando situações complexas para as quais freqüentemente não existe uma forma inequívoca de atuação, mas, sim, aproximações sucessivas, no que Perrenaud (2000) definiu como “agir na urgência e decidir na dúvida”.
Adotar um paradigma educacional significa, por exemplo, que, devem ser realçadas em termos de formação as relações que tem o processo de aprendizagem de um aluno com deficiência mental com o de outro aluno sem deficiência mental. Realçar as continuidades, similitudes, os pontos comuns de desenvolvimento e os que não sendo comuns permitem por meio de estratégias específicas o trabalho em conjunto.
A dimensão dos saberes implica também conhecer formas diversificadas de animação de grupos, quer na esfera da decisão quer no nível do desenvolvimento do currículo, bases sobre o trabalho com famílias e com comunidades em diferentes escalas de compreensão ecológica.

3. Dimensão das competências

A dimensão das competências relaciona-se com o “saber fazer”, isto é, o conhecimento específico que o professor deve ter para conduzir, com sucesso, processos de intervenção em contextos assumidamente diversos.
Cabe aqui refletir sobre os objetivos do trabalho pedagógico com grupos assumidamente heterogêneos. Podemos dizer “assumidamente” porque todos os grupos são heterogêneos em termos de aprendizagem; a questão é se nós os tratamos como tal (considerando que a heterogeneidade é inerente ao grupo e, portanto, “natural”) ou se nos relacionamos como grupos (naturalmente) heterogêneos como se fossem problemáticos só pelo fato de não serem homogêneos. Trabalhar com grupos assumidamente heterogêneos é, pois, considerar em termos de avaliação, planejamento e intervenção, que a heterogeneidade é própria do grupo e a situação anômala seria a de encontrar um grupo de aprendizagem que se pudesse considerar homogêneo. Ainda refletindo sobre o trabalho com grupos assumidamente heterogêneos, cabe perguntar o que significa considerar as diferenças dos alunos. Como afirmamos antes, o simples conhecimento das diferenças não conduz inexoravelmente à adoção de modelos inclusivos (RODRIGUES, 2007). O conhecimento das diferenças entre os alunos pode servir para justificar a sua não inclusão. Pode servir, ainda, para encontrar estratégias e metodologias que levem à anulação dessas diferenças. Neste caso, conhecer as diferenças seria só o primeiro passo para as anular; considerar a heterogeneidade não seria mais que a primeira etapa de um processo educativo, que teria como finalidade promover a homogeneidade dos alunos.
Não é esse o objetivo da Educação Inclusiva. Acreditando que as diferenças são inerentes a todos os humanos e dando-lhes uma conotação positiva, a Educação Inclusiva procura usar as diferentes abordagens, entendimentos, valores e práticas dos alunos para enriquecer o processo pedagógico. Se assim pensamos, anular as diferenças significaria empobrecer e anular o poderoso efeito que ela tem para a educação em grupos diversificados. O objetivo da Educação Inclusiva não é, pois, anular as diferenças e, sim, entendê-las, mantendo-as ativas, encorajar o seu aparecimento e expressão enfim, torná-las presentes e utilizáveis para o processo educativo de todos os alunos.
Esta dimensão de competências tem vários momentos interligados: avaliação, planejamento, intervenção.
1. Avaliação. Trata-se de uma das áreas em que os professores sentem mais dificuldades, em particular quando procuram uma sistematização destas avaliações para passar às fases seguintes. Quando perguntados sobre quais as áreas, os instrumentos e os critérios de avaliação que usam, os professores de EE referem-se que usam conjunto de metodologias que são freqüentemente difíceis de sistematizar como fundantes de um processo de intervenção. Por exemplo, referem-se à observação dos produtos de aprendizagem, mas faltam os critérios que podem fazer desta observação uma avaliação. É também citada a utilização de testes (ex: “teste da figura humana”, “teste perceptivo-motor de Bender”, “testes psicomotores”, etc.), mas também sem uma idéia clara do significado educacional destas provas, isto é, de como é que elas contribuem para encontrar ou identificar áreas de intervenção. É essencial desenvolver modelos de avaliação educacional que permitam, numa lógica ligada ao processo educativo, encontrar indicadores que consintam a avaliação de fatores que influenciam a aprendizagem.
2. Planejamento encontra-se também com grandes dificuldades. Como se planeja uma aula ou um ciclo de atividades para um grupo assumidamente heterogêneo? Como é que o conhecimento dos alunos influencia o planejamento? De que forma a natureza dos objetivos influencia os enquadramentos que se propõem para a aprendizagem? Sabemos que os professores planejam mais em termos de conteúdos e menos em termos de estratégias necessárias para o ensino destes conteúdos. Também neste aspecto o trabalho cooperativo entre professores pode ser determinante.
3. Por fim, a intervenção propriamente dita com os seus múltiplos aspectos: conhecimento de estratégias de ensino gerais e específicas face a dificuldades que os alunos podem evidenciar (trabalho multinível, resolução de problemas, trabalho de projeto, pesquisa de informação etc.)
Uma questão determinante na aquisição de competência docente na área da Educação Inclusiva diz respeito às estratégias de formação que são usadas. Frequentemente, utilizam-se estratégias convencionais para a formação de profissionais que se espera sejam perspicazes, inovadoras, inclusivas e criativas na sua intervenção. De onde lhes vem, então, esta clarividência, e criatividade se ela não for explicitamente desenvolvida durante a formação? Será que professores que são formados com ensino magistral, uniforme, pouco claro sobre a importância do grupo, fazendo apelo exclusivo ao desempenho individual, menosprezando a criatividade e a iniciativa do aluno etc. podem depois ser convictos e eficazes promotores de práticas inovadoras, valorizadoras da diferença e promotoras de um conhecimento significativo para o aluno?
Quando se fala de modelos isomórficos em formação de professores quer-se dizer que os professores devem ter ao longo da sua formação profissional acesso a um conjunto de experiências em tudo semelhantes às que vão encontrar na vida profissional. Um professor que vai ser um agente de inclusão na escola será certamente um profissional mais conhecedor, convicto e eficaz se ele próprio tiver passado na sua formação por experiências semelhantes às que desejaria que os seus colegas e a escola adotassem em benefício da Inclusão. Neste aspecto faz também sentido incentivar uma grande mudança nos programas e estratégias de formação de professores.
4. Dimensão das atitudes

De pouco serviriam os saberes e as competências se os professores não tivessem atitudes positivas face à possibilidade de progresso dos alunos. É fundamental que os professores do ensino regular e de Educação Especial conheçam por experiência própria situações em que uma adequada modificação do currículo e das condições de aprendizagem consiga eliminar barreiras à aprendizagem e promover a aquisição de novos saberes e competências aos alunos. Um professor para desenvolver atitudes positivas não pode, como era tradicional, construir a sua intervenção baseado no déficit, mas, sim, naquilo que o aluno é capaz de fazer para além da sua dificuldade. Basta imaginar qual seria o futuro acadêmico de um jovem que tendo dificuldades, por exemplo, em Matemática, visse todo o seu currículo escolar ser referenciado à essa matéria. Assim, a construção curricular baseada na deficiência ou na dificuldade, para além de ter uma duvidosa probabilidade de sucesso para o aluno, evidencia uma visão do professor que mais realça as dificuldades do aluno do que as suas potencialidades. Para desenvolver expectativas positivas é essencial que o professor conheça múltiplas formas de eliminar e contornar dificuldades e barreiras e que possa, a partir deste trabalho, acreditar e fazer acreditar que o aluno é muito mais do que as suas dificuldades e que existem variadas formas para se chegar ao sucesso.
Conhecer casos de boas práticas, conhecer percursos pessoais para além da idade escolar, conhecer, enfim, depoimentos de pessoas que conseguiram construir vidas autônomas e úteis apesar de condições adversas, são certamente fatores que influenciam a formação de atitudes. Claro que quanto maior for a implicação e proximidade da pessoa com estes processos bem sucedidos, mais sedimentada e convicta será a sua atitude positiva face à possibilidade de sucesso de alunos com dificuldade.

5. Síntese

As reflexões que colocamos, anteriormente, talvez possam ser sintetizadas em doze pontos que, na nossa opinião, deveriam ser objeto de uma ponderada reflexão por parte dos responsáveis desta formação, qualquer que seja o nível a que trabalham. Como dissemos acima, este processo da formação de professores é um processo permanente de avaliação e de modificação que se encontra em todos os países. Esta dúzia de reflexões procura obviamente contribuir para a discussão nos seus diferentes aspectos.
1. A existência de uma disciplina de “Necessidades Educativas Especiais” ou análoga deverá evoluir para uma organização curricular que sedie os conteúdos, habitualmente ministrados nesta disciplina, em cada uma das disciplinas que compõem a ementa dos cursos de formação de professores.
2. Os conteúdos a tratar na formação inicial dos professores deverão dar ênfase às deficiências de maior incidência e menor intensidade realçando os aspectos psicopedagógicos e não os clínicos.
3. Os profissionais formados para dar apoio nas escolas deveriam ter uma formação específica que os habilitasse a trabalhar, também, com casos que evidenciassem dificuldades escolares não provocados por uma condição de deficiência. Alunos sem deficiência poderão ter dificuldades que necessitam de um apoio especializado.
4. Os professores que realizam um curso especializado de apoio a alunos com necessidades educativas especiais deverão adquirir uma sólida formação em modelos educativos, em que os alunos com NEE sejam educados em modelos inclusivos (incluindo as práticas supervisionadas).
5. O objetivo da Educação Inclusiva não é acabar com as diferenças, mas mantê-las ativas para poderem ser rentabilizadas na educação de todos os alunos. A anulação ou “impermeabilização” das diferenças impede que os alunos se confrontem com outros pontos de vista e realidades e por este motivo empobrece a qualidade da educação.
6. Os professores deverão ser formados com técnicas pedagógicas semelhantes às que se pretende que eles usem quando forem profissionais (ex: ensino multinível, aprendizagem e ensino cooperativo, modelos ativos e criativos de aquisição do conhecimento, hábitos de trabalho em equipe e práticas reflexivas etc.). Um exemplo deste ponto pode ser encontrado na maior intensidade de prática de acesso à Internet de professores que foram formados usando estratégias de pesquisa orientada no espaço virtual.
7. Os modelos de formação devem enfatizar a ligação entre a teoria e a prática, sobretudo, proporcionando a oportunidade de tomar decisões pragmáticas e fundamentadas teoricamente. O recurso a sítios virtuais de supervisão e acompanhamento é certamente um meio importante para que se efetue a integração teoria-prática.
8. A formação deve contemplar igualmente o domínio dos saberes, das competências e das atitudes. É essencial que cada um destes domínios seja submetido a um rigoroso escrutínio reflexivo, de forma a criar profissionais capazes de fazer uma avaliação equilibrada e pragmática do seu trabalho.
9. A formação por meio da resolução de problemas concretos é uma poderosa estratégia. Esta estratégia vale não só para a formação permanente, mas também para a formação inicial e especializada onde a investigação, a partir de casos e de contextos concretos, permanece como uma importante estratégia. A criatividade e a inovação podem e devem ser desenvolvidas por meio da implicação dos formandos em processos de investigação-ação.
10. Os locais de prática supervisionada (estágio) devem ser escolhidos em função dos enquadramentos em que se prevê que os futuros profissionais vão trabalhar e em total participação na vida quotidiana das escolas.
11. É necessário incentivar uma atitude de supervisão e de desenvolvimento profissional nos docentes de NEE. Para isto é essencial que existam espaços de informação disponibilizados via espaço virtual e momentos presenciais de partilha e discussão.
12. O modelo de alguém “de fora” (escola de formação ou outra estrutura) que venha até à escola para fazer o acompanhamento e aconselhamento de problemas sentidos internamente é de grande eficácia. A possibilidade de dispor de “amigos críticos” pode ser formalizada por parcerias de formação entre grupos de escolas e centros de formação.
Na década de 70/80 do século passado desenvolveu-se uma polêmica sobre se a escola faria ou não diferença no perfil dos alunos. Esta polêmica foi resolvida com aceitação afirmativa, que certamente a escola e os seus meios representam um modo importante de promoção do conhecimento dos alunos, instrumento de aquisição de múltiplas competências, meio de socialização e, sobretudo, um meio de promoção da cidadania e da mobilidade social.
Com o conhecimento que dispomos não é legítimo colocar em dúvida a utilidade da formação, quer seja inicial ou permanente. É, sim, possível questionar quais os modelos, quais os valores, objetivos e práticas sob as quais se realiza esta formação. É sobre este aspecto que este texto e as suas 12 reflexões finais procuram encontrar a sua pertinência como elemento de identificação e de discussão sobre tão importante questão.

Referências

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CAMPOS, B. P. Políticas de Formação de Profissionais de Ensino em Escolas Autônomas. Porto: Ed. Afrontamento, 2000.
CASPAR, Pierre. Ser formador nos dias que correm. Novos atores, novos espaços, novos tempos. Sísifo-Revista de Ciências da Educação. 02, p. 87-94, 2007.
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PARRILLA, A. & HARRY, D. Criação e desenvolvimento de Grupos de Apoio entre professores. São Paulo: Ed. Loyola, 2003.
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