sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Colóquio

COLÓQUIO – Páginas 18 a 32

Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva

A proposição da nova Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva/2008 reflete a ampla discussão realizada nos diversos fóruns educacionais sobre inclusão no País, as conquistas do movimento das pessoas com deficiência, bem como os avanços dos marcos legais e educacionais. O Documento configura a educação inclusiva como uma ação política, cultural, social e pedagógica em defesa do direito de todos a uma educação de qualidade e da organização de um sistema educacional inclusivo.
Neste colóquio dialogam os professores pesquisadores da área de educação especial, que integraram o Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria Ministerial nº 555/2007, que teve a incumbência de elaborar a nova Política. A fim de dar conseqüência a esta elaboração, esses professores, juntamente com a equipe gestora da Secretaria de Educação Especial, desencadearam um amplo debate sobre a educação especial em nosso País.
1. O documento “Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva” contextualiza a inclusão como um movimento mundial que se intensifica a partir da Conferência Mundial de Educação para Todos – 1990, da Declaração de Salamanca – 1994 e da Convenção da Guatemala – 1999, configurando um novo paradigma educacional. Como os demais países estão redimensionando a educação especial nesta perspectiva?
Claudio Baptista: É de conhecimento de todos que se interessam pela área da educação especial a existência de uma tendência internacional no sentido de valorizar as políticas inclusivas quando se discute a oferta de escolarização para crianças com deficiência ou com necessidades educativas especiais. As experiências coincidem na redução de matrículas no sistema de ensino especial e no aumento das matrículas desses alunos na rede de ensino comum. No entanto, há diferenças significativas quanto ao destino das escolas especiais e ao trabalho dos educadores com formação específica na área. Temos, por exemplo, países que investem em centros especializados e que substituiriam as escolas especiais e concentrariam os serviços especializados, para os quais são encaminhados os alunos que exigem uma ação complementar àquela oferecida pelo ensino comum. Nesse sentido, o que temos é também uma variação muito grande sobre a configuração desses centros, pois é freqüente que se conceba que tais espaços deveriam estar pautados na qualificação clínica dos atendimentos, o que resultaria em equipes com predominância da área de saúde e no acompanhamento e suporte dirigido ao aluno e não aos contextos relacionais dos quais ele participa. Esse, segundo acredito, é um divisor de águas quando trabalhamos com uma lógica de “apoio” que ganha uma configuração institucional como aquela de um centro: para garantir que haja mudanças capazes de incidir na escola e nos seus integrantes, um centro de apoio deveria ter como eixo o trabalho voltado para os contextos relacionais, valorizando o debate feito com a escola acerca de questões pedagógicas e do acompanhamento de projetos específicos que se referem aos alunos que demandam ações diferenciadas por parte da escola. Evidentemente, o desenho institucional desses “centros” está diretamente relacionado à concepção que temos de educador especial ou de práticas que sejam características da área. No caso da Itália, por exemplo, para falar de um contexto com o qual tenho intenso contato nos últimos 16 anos, a existência dos “centros”, particularmente aqueles da Emília Romagna (Região de Bologna), tem pouca relação com o que nós identificamos com uma escola especial. Há uma rede de centros que são chamados de “centros de documentação e recursos” e tendem a oferecer apoios muitos amplos que podem ser de auxiliar as escolas na elaboração de projeto específico, na formação em sintonia com as necessidades das escolas de referência; na promoção de debates sobre temas associados à educação, inclusão e acessibilidade; na interlocução das famílias com profissionais do atendimento; nas pesquisas sobre a escolarização de alunos com necessidades especiais; na relação entre os diferentes níveis da gestão da escola e dos entes governamentais que as mantém.

Maria Teresa Mantoan: Tenho acompanhado as iniciativas em favor da inclusão escolar em alguns países europeus e da América do Norte desde o início dos anos 90 e em todos eles predomina, até então, um grande empenho das autoridades educacionais, pais e instituições para que as escolas comuns se redimensionem e acolham a todos os alunos. A tendência na maior parte desses países, contudo, é manter a educação especial como substitutiva do ensino comum e os alunos, pais ou responsáveis poderem optar pela escola especial ou comum. O Brasil, nesta última década, destacou-se pela vanguarda de seus projetos inclusivos. A proposta brasileira de educação especial, na perspectiva inclusiva, se diferencia das demais, porque garante a educação a todos os alunos, indistintamente, em escolas comuns de ensino regular e a complementação do ensino especial. Essa inovação, como está claro na nova Política Nacional de Educação Especial, não só redimensiona a educação especial como provoca a escola comum, para que dê conta das diferenças na sua concepção, organização e práticas pedagógicas. Temos de aproveitar esses novos tempos para romper com paradigmas que nos detém no avanço e melhoria da educação brasileira.

Maria Amélia: Sem dúvida, a inclusão é um movimento mundial. Cada país teve a sua história em relação ao atendimento a pessoas com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento, superdotação/altas habilidades e, por isso, cada um deles tem lançado mão de diferentes formas de práticas inclusivas. Por exemplo, nos Estados Unidos que tem uma longa história de institucionalização dessas pessoas, hoje há estados que fecharam todas as escolas especiais mantidas pelo governo e todas as crianças com deficiências, transtornos globais de desenvolvimento, superdotação/altas habilidades são matriculadas nas escolas da rede pública de ensino de seu bairro. Outros mantiveram os vários serviços: salas de recursos, classes especiais, serviço itinerante e algumas escolas especiais. Penso que, de um modo geral, a inclusão não terá retrocessos e eu gostaria de viver, pelo menos, mais 30 anos para ver como ficará esse movimento.

Rita Vieira: A educação inclusiva é objeto de interesse em muitos países. Não conheço a situação de todos os países que fazem apelo a essa questão, mas conheço bem a situação do Canadá, a província de Quebec, onde fiz meus estudos de doutorado. O Canadá, certamente, é um dos paises pioneiros no desenvolvimento do conceito de educação inclusiva. A julgar pelo número de alunos com deficiência que freqüentam as salas regulares das escolas canadenses se poderia supor que a legislação das províncias daquele país, no que diz respeito à educação inclusiva, determina que TODOS os alunos sejam integrados na classe regular. Entretanto, esta não é a realidade. Apenas duas das dez províncias canadenses, Colombie Britannique e Nouveau-Brunswick, asseguram por lei que TODOS os alunos que apresentam deficiência sejam incluídos na classe regular de ensino. As oito demais províncias prevêem por lei um só sistema de ensino nomeado mainstreaming, que não assegura o acesso de TODAS as crianças na classe regular. De fato, ele prevê diversas modalidades de serviços partindo dos mais integrados (classe regular) para os menos integrados. Do ponto de vista legal, o Brasil está na vanguarda em relação ao Canadá no que consiste a educação inclusiva. Entretanto, uma nova luta começa no sentido de concretizar no cotidiano da escola o que já temos garantido por lei. Nós sabemos que atualmente no Brasil uma parte importante de crianças com deficiência ainda não freqüentam o sistema público de ensino. No Canadá, ao contrário do Brasil, a grande maioria dos alunos que apresentam deficiência freqüenta a escola pública. Deste modo, embora a legislação da maior parte das províncias canadenses não assegure a inclusão dos alunos com deficiência na classe regular, é nesse espaço educativo que a maioria delas está inserida. Progressos enormes a fim de favorecer a educação de alunos com deficiência na classe regular foram alcançados naquele país nos últimos trinta anos. Na província de Quebec, o Ministério de Educação do Lazer e do Esporte tomou diversas medidas neste sentido. Dentre elas, a garantia da presença na escola do professor ortopedagogo (que pode ser entendido como o nosso professor do atendimento educacional especializado). O número de professor ortopedagogo por escola é proporcional ao número de alunos de cada escola, independente do número de crianças com deficiência nela matriculadas. Este professor poderá atender mais de uma escola. Ele trabalha com o aluno com deficiência e faz a interlocução com o professor do ensino comum no sentido de apoiar as ações dele e da escola em favor de uma melhor integração desse aluno na sala regular. Em síntese, a escola pública daquele país se organizou criando as condições para receber e favorecer a aprendizagem da grande maioria dos alunos com deficiência no ensino comum. No Brasil, os sistemas de ensino ainda têm um caminho a percorrer para assegurar uma boa educação a TODOS. É importante compreender que a inclusão não é tarefa da educação especial, mas das redes públicas de ensino.

Ronice Quadros: Cada cultura tem a sua forma de construir e pensar a diferença. Não podemos pensar em paradigmas homogeinizadores e conceber a inclusão sem pensar nos processos lingüísticos, sociais, culturais, epistemológicos para acessar o conhecimento. Uma das questões fundamentais é visibilizar e assumir as diferenças dentro dos espaços educacionais partindo do pressuposto que não basta estar junto para haver inclusão, mas importa o que fazem esses educandos dentro desses espaços para que sejam significativas as aprendizagens. As diferenças fazem parte dos grupos sociais e são determinadas a partir da perspectiva do outro. Em relação à diferença surda, o reconhecimento da Libras e do Português como segunda língua no Decreto 5626, foi um avanço em termos de Brasil. Isso é um redimensionamento em termos de perspectiva inclusiva porque a língua constitutiva dos sujeitos passa a assumir uma representação política fundamental. No entanto, ainda são incipientes as abordagens no campo pedagógico com conhecimento de causa propiciado no contato com as comunidades surdas. O ponto referencial modifica de acordo com os olhares dos sujeitos implicados, ser “surdo”, ser “cego” etc. tem múltiplos significados na suas relações com o outro dentro dos espaços sociais, dentre eles, o espaço escolar. É importante assinalar que a Declaração de Salamanca provocou a visibilização das diferenças. Este é o tipo de movimento que está sendo desencadeado a partir do que vem sendo referido como educação inclusiva no mundo. Os tempos, os espaços e as formas de ensinar e aprender passam a ser ressignificados a partir das diferenças. Sob essas perspectivas, a Educação Especial, quando se aproxima das necessidades lingüísticas, culturais, sociais das pessoas revisando permanentemente o seu papel e sua responsabilidade com a inclusão, dá um passo positivo na tarefa imensa de reverter os quadros dramáticos de exclusão social.

2. Tendo em vista que no Brasil, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, os preceitos legais já definem a educação como um direito de todos com igualdade de oportunidades, o que justifica, hoje, a elaboração deste Documento?

Maria Amélia: Eu iria um pouco antes da Constituição de 1988, que definiu que os alunos com necessidades especiais deveriam ser atendidos, “preferencialmente”, na rede regular de ensino. A Lei 4.024, de 1961, também afirmava que “no que for possível” as crianças com necessidades especiais deveriam ser atendidas na rede regular de ensino. E assim, tantas outras leis... Se analisarmos que em 1961 o Brasil já dispunha de uma lei que garantia o atendimento dessas crianças na rede regular de ensino, enquanto que, nessa mesma época, na Escandinávia se falava no “Princípio de Normalização” ou seja, “deixar que as pessoas com deficiência mental tivessem uma convivência o mais próximo possível do normal”, o Brasil saiu na vanguarda em termos de inclusão. No entanto, termos como: “no que for possível”, “preferencialmente” impediram que o processo inclusivo no Brasil se iniciasse há mais de 40 anos atrás! Portanto, a elaboração de uma política de inclusão em nosso País, neste momento, é mais do que necessária!

Soraia Napoleão Freitas: Na minha opinião, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva tem a função de reforçar esses direitos já previstos, que até então não foram plenamente assumidos pela educação brasileira. A justificativa dessa proposição político-educacional centra-se na necessidade de transformar os sistemas de ensino, a partir de uma concepção de ensino e aprendizagem que efetivamente respeite as diferenças dos alunos. Não se trata de pensar tão somente a educação para o deficiente, mas, sobretudo, de basilar a prática educativa e a organização da escola no respeito à diferença do outro. E é nesse princípio, de defesa da escolarização, que essa Política tem seu suporte e sua justificativa.

Claudia Dutra: A educação como um direito de todos é o princípio constitucional que fundamenta a organização da educação especial na perspectiva da educação inclusiva e a implantação de políticas públicas que conduzam à superação dos valores educacionais subjacentes à estrutura excludente da escola tradicional, constituindo ações direcionadas às condições de acesso, participação e aprendizagem de todos os alunos nas escolas de ensino regular. Muitos sistemas de ensino já percorrem um caminho que busca concretizar este objetivo, cumprindo os preceitos constitucionais que garantem a plena participação e inclusão. Entretanto, este desafio colocado para os gestores e educadores, e toda a sociedade, desde 1988, não alcançou, ainda, o conjunto dos sistemas de ensino para que se efetive o direito à educação a todos os alunos, indistintamente. Desse modo, no que tange à educação especial, grande parte dos sistemas não aprofundou com radicalidade o sentido da educação inclusiva, de modo a alterar a atuação da educação especial dissociada do contexto das escolas regulares, passando a apoiar o desenvolvimento das escolas para uma perspectiva pedagógica que respeite as diferenças e atenda as necessidades específicas dos seus alunos no processo educacional. É preciso construir condições favoráveis para a inclusão e essa materialidade só acontece a partir de uma sólida definição por um sistema educacional inclusivo. Portanto, esta é a justificativa para a elaboração de uma nova Política, ou seja, a definição conceitual e a orientação para as mudanças no contexto educacional voltadas para garantir as condições de acessibilidade, a formação dos educadores, à oferta do atendimento educacional especializado e a organização da educação especial como parte do projeto pedagógico da escola, entre outras, inerentes ao processo de inclusão e aprendizagem. Este é o sentido do redimensionamento das políticas de educação e os documentos mais atuais que refletem uma avaliação da organização dos sistemas de ensino indicam uma transição do conceito de integração para o de inclusão, bem como o desenvolvimento para a reformulação das práticas pedagógicas. Este movimento que ocorre em grande parte dos países, está expresso na Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência aprovada pela ONU, em 2006, onde foi assumido o compromisso de assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis de ensino.

Claudio Baptista: A elaboração de uma nova Política é justificada pela necessidade de atualização de um dispositivo. A Política Nacional de Educação Especial sustenta uma perspectiva que é aquela resultante de um conjunto de forças e percepções que, em um dado momento histórico, é considerado o mais qualificado como orientação para os sistemas de ensino. Nesse sentido, a elaboração de um texto orientador torna-se pertinente quando há mudanças históricas que justificam novas proposições. Apesar de termos marcos legais que ainda admitem que a escolarização em espaços específicos da educação especial seria recomendável para alguns sujeitos, como é o caso da Resolução n0 02, de 2001, do CNE, houve grandes alterações no plano legal quanto às possibilidades de inclusão escolar. Tais mudanças são perceptíveis, na maioria das vezes, no teor propositivo dos documentos aprovados pelos Conselhos – Nacional ou Estaduais, no sentido de redução das restrições que estariam associadas aos alunos que “poderiam” estar no ensino comum. No que se refere ao plano das proposições pedagógicas, temos atualmente um contexto muito diferente daquele de 1994, quando houve a aprovação da anterior Política Nacional de Educação Especial. Ao longo desses anos, houve uma profusão de iniciativas que, com diferentes motivações, têm proposto a reconfiguração de sistemas de ensino, especialmente aqueles municipais, diante da tendência à municipalização do ensino fundamental e ampliação das responsabilidades dos municípios acerca da educação infantil. A política pode ser considerada o movimento que, em 2007, se intensificou e continua nos mobilizando em debates públicos, muitas vezes acirrados, a respeito dos temas que dizem respeito à inclusão. A política ganha corpo e nome ao entendermos que os gestores não têm apenas direito, mas têm obrigação de serem propositivos no que concerne à gestão das diferentes instâncias do sistema educacional. A política se consolida, como ocorreu no segundo semestre de 2007, ao reunirmos profissionais com responsabilidade de discutir as direções das “palavras” que compõem um texto orientador, ao participarmos de audiências públicas promovidas por redes de ensino que questionam as diretrizes anunciadas, ao convidarmos especialistas para serem ouvidos sobre temas como a formação de professores em educação especial, ao intensificarmos em cada espaço a discussão sobre as novas perspectivas propostas pela “Nova Política”.

3. A nova Política orienta a implementação da educação especial a partir de uma articulação com o ensino regular. De acordo com esta proposição, o que muda para os sistemas de ensino?

Claudia Dutra: O que muda a partir desta Política é a ênfase no desenvolvimento dos sistemas educacionais inclusivos, onde a educação especial deve integrar a proposta pedagógica da escola, não mais organizada como modalidade substitutiva à escolarização. A definição da educação especial como modalidade complementar e transversal às etapas, níveis e modalidades de ensino, que disponibiliza recursos e serviços, realiza o atendimento educacional especializado e orienta alunos e professores na sua utilização, pressupõe uma reorganização de recursos materiais e profissionais especializados para apoiar as escolas nas alterações necessárias, no âmbito das práticas pedagógicas e da oferta do atendimento educacional especializado. O grande desafio colocado em nosso País é de alcançar uma educação de qualidade para todos, um objetivo que será construído em sintonia com a perspectiva da educação inclusiva, considerando que não há qualidade sem atenção à diversidade. Neste contexto, a implantação do Plano de Desenvolvimento da Educação-PDE se caracteriza pelo esforço conjunto em torno da qualidade da educação, pelo avanço nas medidas direcionadas à inclusão e pelo propósito de realizar um grande investimento nas escolas para acolher a todos os alunos, criando melhores condições de infra-estrutura e formação profissional que contemplem a promoção do ensino e da aprendizagem e a avaliação do processo educacional. Neste sentido, as mudanças devem acontecer no âmbito geral dos sistemas de ensino e a implementação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva exigirá que cada sistema reestruture a sua rede de ensino para assegurar a atuação da educação especial nas escolas regulares com propostas pedagógicas, recursos pedagógicos e de acessibilidade para a plena participação dos alunos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades /superdotação.

Soraia Napoleão Freitas: Penso que esta Política, ao propor a articulação entre o ensino regular e a educação especial, lança a possibilidade da escola repensar a totalidade da sua organização, historicamente sedimentada. Ou seja, a educação especial, que na organização dos “sistemas de ensino” configurava um “sistema paralelo”, passa a constituir parte integrante desses “sistemas”. Logo, há a necessidade de repensar a organização escolar nos níveis macro e micro estruturais, contemplando desde a gestão no sentido mais amplo do “sistema de ensino” e da escola, até a organização da prática educacional em sala de aula. É um entendimento diferenciado de ensinar e aprender que precisa perpassar as organizações escolares e que modifica o entendimento de gestão até então conhecido.

Rita Vieira: A primeira mudança é uma mudança de perspectiva: a escola é compreendida como um espaço de direito, um bem social que deve ser assegurado a TODAS as crianças, indistintamente. Neste novo documento fica claro o que é de competência da escola comum e o que é de competência da educação especial, devendo os sistemas de ensino se organizarem para oferecer a TODAS as crianças não somente o acesso e a permanência na escola, mas também os serviços educacionais que forem necessários para garantir a aprendizagem escolar. A articulação entre o ensino comum e a educação especial, sobretudo através do atendimento educacional especializado, deve visar sempre a aprendizagem dos alunos que se beneficiam desse serviço. Na verdade, o que deve mudar nos sistemas de ensino é a oferta do atendimento educacional especializado para os alunos que dele necessitam e o que já se vem reivindicando há muitas décadas: a transformação da escola pública brasileira, especialmente no que consiste a gestão da escola e a gestão da classe. Transformar a gestão da classe significa transformar as práticas que temos hoje (em sua maioria pautadas no conceito de homogeneidade) em práticas que atendam a diversidade da sala de aula (pautadas no principio da heterogeneidade). Essa transformação da escola não é requerida em decorrência da demanda de inclusão escolar, visto que não são apenas as crianças com deficiência que apresentam dificuldades para se apropriarem dos conteúdos escolares, mas também uma grande parte daquelas consideradas normais.

Antônio Osório: A reconstrução das práticas pedagógicas e de suas respectivas orientações configuradas por diferentes grupos (gestores, educadores e demais segmentos) envolve discussões a respeito da complexidade que permeia a tentativa de definirmos um sistema de ensino no nível nacional ou local. Essas práticas, analisadas isoladamente, desenham um mosaico em que cada pedaço tem funções pré-estabelecidas dentro de uma estrutura organizativa mais ampla, obstruindo sua própria razão de existir, mas tendo sua configuração estabelecida pela própria regulamentação do Estado, reduzida a questões de financiamento e responsabilidades. Parte-se do princípio que não existe um sistema de ensino, mas uma organização estrutural que recebe essa denominação. Clareado este aspecto, o lócus é marcado como um espaço, em que as regras são sujeições, submissões e opressões em circunstâncias diversas, uns, autoritários e vigorosos, e outros, em que as partes podem alternar-se sob regras que se igualam ou se repelem sobre as medidas adotadas. Essa é a prática daquilo que os educadores denominam de sistema. A meu ver, o sistema de ensino que está posto culturalmente deveria ser todo repensado a partir do aluno real – Ora, como essa estrutura deveria mudar para lidar com a diferença? Primeiro, encarar suas dinâmicas de punição e seleção, de forma transparente, sem corporativismos. Entender, que a escola é indiscutivelmente uma instituição social, e como tal deve satisfação de suas práticas pedagógicas à comunidade escolar. Segundo, o aluno deve ser visto como um ser que aprende. Portanto, é necessário repensar a uniformidade de conteúdos, atividades e avaliação. Ao aluno deve ser dada efetivamente a condição de ser o centro do processo ensino-aprendizagem e não a condição de coadjuvante desse processo. Agora, em termos de macro-estrutura, há sem sombra de dúvidas, necessidade de democratização dos processos de decisões de forma que aquilo que denominamos de sistema de ensino rompa com a idéia de centralidade e controle, passando a se pensar na educação.

Denise Fleith: Já era tempo de haver uma comunicação mais efetiva entre ensino regular e educação especial. A partir da nova Política será necessário um diálogo constante no interior dos sistemas de ensino. O foco deve ser o aluno com suas necessidades de aprendizagem cognitivas, afetivas e físicas. Isto implicará planejamentos em conjunto, investimento na formação inicial e continuada de pessoal, equipes de trabalho que incluam profissionais com formações distintas e a reorganização da arquitetura da escola, entre outras ações. Ademais, é importante que o profissional da educação tenha conhecimentos mais amplos na área da Educação. Assim, por exemplo, um professor de matemática deverá ter na sua formação acesso ao conteúdo sobre Educação Especial e não apenas sobre Matemática.

Eduardo Manzini: Vários podem ser os pontos abordados aqui. Um deles é que o documento declara quem será a população a ser atendida pelos recursos humanos e financeiros da Educação Especial: alunos com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Essa definição não é só no sentido terminológico, mas deixa claro que atenderá as necessidades educacionais especiais dessa população. Dessa forma, nem todos os alunos “com necessidades educacionais especiais” serão alunos atendidos pela Educação Especial. Isto deve, então, conferir à Educação o papel de atender a todos os alunos com deficiência ou não, mas deixando claro o que deve mudar em termos de apoio da Educação Especial. O segundo ponto é o papel de transversalidade da Educação Especial, que deverá auxiliar a todos os níveis de ensino. Em particular, o documento pontua o acesso das pessoas com deficiência na universidade, assumindo, então, o papel de atuar dentro do Sistema de Ensino Superior, fato inédito. Essa parece ser uma reivindicação justa e antiga dos alunos universitários com deficiência, principalmente, no que se refere às condições de acessibilidade e de autonomia, como, por exemplo, equipamentos para alunos com baixa visão, tais como ampliação de telas, impressora Braille, notebook com sintetizador de voz, e mesmo em termos de estrutura física, como remoção de barreiras arquitetônicas. Um terceiro ponto, que pode ser o mais polêmico, refere-se a conferir ao atendimento especial uma abordagem inclusiva, como sendo complementar e não substituta à Educação.

4. Muitas escolas já vivenciam as mudanças impulsionadas pela educação inclusiva, garantindo o acesso e o atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos. Como se configura a realidade atual dos sistemas de ensino, e quais os desafios a serem superados?

Maria Teresa Mantoan: Ainda há muitas barreiras a serem ultrapassadas para que a educação inclusiva seja, de fato e de direito, uma conquista da educação brasileira. Embora esteja crescendo o número de matrículas desses alunos nas escolas comuns, estas precisam se mobilizar mais no sentido de compatibilizar suas intenções inclusivas com suas propostas de trabalho pedagógico e com o aprimoramento do processo educativo de todos os alunos. Mudanças substanciais na organização pedagógica do ensino comum constituem um grande desafio, que não está sendo suficientemente percebido pelos sistemas de ensino. Ainda se atribui à educação especial a condução do projeto inclusivo em nossas escolas e persiste a idéia de que os alunos com deficiência e demais alunos da educação especial são os únicos excluídos de suas turmas! O tempo e a defesa de uma posição firme e clara sobre o que representa a educação especial, em uma dimensão inclusiva, pode ser (e será!) uma força para a transformação da realidade atual de nossas escolas ao abraçarem a inclusão. Este é um trabalho que exige perseverança e muito empenho do ensino comum articulado ao especial e de todos os que compõem as equipes de nossas escolas. Do lado da educação especial também há muito a ser feito. Para a transformação de seus serviços, de modo a atender ao caráter complementar que lhes é atribuído, a formação de professores especializados em atendimento educacional especializado e de outros profissionais da Educação Especial vai exigir tempo, e é imprescindível que se dê prosseguimento aos cursos que a SEESP está promovendo, no momento, para formar professores em serviço em todo o Brasil, atendendo à demanda atual das escolas comuns de instalar seus serviços de atendimento educacional especializado.

Denise Fleith: No caso dos alunos com altas habilidades/superdotação, apesar dos avanços na área, observamos um desconhecimento por parte da sociedade acerca de quem é este indivíduo. Muitos mitos sobre o superdotado ainda povoam a mente de professores, pais, gestores e outros. Os educadores e os leigos em geral, acreditam que a superdotação é uma característica exclusivamente inata e, por isso, o superdotado teria recursos para desenvolver por si só suas habilidades, sem necessidade de estimulação ou de um ambiente promotor de seu potencial. Acredita-se que o aluno com altas habilidades vai se sair bem independentemente do contexto educacional em que esteja inserido. Assim, muitos passam despercebidos por seus professores. O aluno com altas habilidades/superdotação é ainda muito negligenciado em sala de aula. Este aluno já está matriculado no ensino regular, mas suas necessidades nem sempre são atendidas, o que pode provocar desinteresse e baixa motivação pelas atividades escolares, além de um desempenho aquém do seu potencial. Neste sentido, foi muito importante a criação dos Núcleos de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (NAAHS) implantados pela SEESP/MEC, a partir de 2005, em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal, pois passou a dar maior visibilidade a esses alunos. Também relevante foi a publicação, em 2007, da coletânea de quatro volumes, intitulada “A Construção de Práticas Educacionais para Alunos com Altas Habilidades/Superdotação”, da Secretaria de Educação Especial, disponível no portal do Ministério da Educação.

Antônio Osório: O principal desafio são as práticas pedagógicas exercidas até então. O exemplo disso é o currículo adequado à estrutura do sistema e das escolas de forma limitada. Os anos 80 sinalizaram uma nova possibilidade de organização curricular, numa perspectiva progressista, dando ênfase às experiências culturais trazidas pelo aluno para resolver os problemas enfrentados no cotidiano, promovendo, segundo Freire, o pensamento crítico e privilegiando a justiça social e à equidade. Neste momento, a valorização por parte das escolas passou a ser os métodos de ensino, desprovidos, muitas vezes, de conteúdos, mas mantendo os mesmos mecanismos de controle e as formas mais tradicionais de avaliação de desempenho dos alunos. Nos anos 90, o currículo foi defendido a partir dos discursos de uma perspectiva crítica, reflexos ativos dos diferentes significados culturais e sociais, valorizando os aspectos multiculturais, como as questões relacionadas à raça, ao gênero, às diferenças individuais, à justiça social, às minorias sociais. Porém, a cultura pedagógica não mudou, continuou dominante nas escolas o caráter tecnicista, centrado na aprendizagem dos alunos e na mudança de comportamento, de forma passiva e reprodutora, em técnicas mecânicas e repetitivas controladas pelos diferentes instrumentos avaliativos. Por conta disso, falar de inclusão no campo escolar implica, no primeiro momento, ter clareza de que ela não se destina exclusivamente a um determinado grupo de alunos. Ainda é necessário pensar numa outra escola, sem discriminação e que não reforce os diferentes conflitos históricos da sociedade, que não personifique o aluno como marca ou estigma, diferenciando ou categorizando, como se fosse recuperável ou não, normal ou “anormal”, mas como sujeito de suas próprias construções históricas a partir de suas condições pessoais.

Soraia Napoleão Freitas: As mudanças impulsionadas pela educação inclusiva estão aparecendo cada vez mais no cenário educacional brasileiro. Vale destacar que a concepção do professor é que define a implementação das ações pedagógicas, tendo em vista a inclusão. Nesse sentido, a formação do professor é um desafio constante. Não se trata do professor ter conhecimento das especificidades e características das deficiências ou dos indicadores de altas habilidades/superdotação dos alunos, mas, sobretudo, do professor ressignificar a base da sua prática educativa, ou seja, pensar o currículo, o planejamento e a avaliação sob a ótica da valorização da diversidade e do respeito à diferença.

Rita Vieira: Na minha opinião o principal desafio da escola brasileira é assegurar a escola de tempo integral. O tempo escolar que temos em nosso País, atualmente (meio turno), é insuficiente para a formação (acadêmica, intelectual, moral, ética e estética) dos nossos jovens e das nossas crianças. A escola brasileira já avançou muito no entendimento referente à acessibilidade das crianças. No entanto, a concretização da inclusão se dará quando os sistemas de ensino garantirem a TODAS as crianças, indistintamente, uma educação de qualidade. Para que a nossa política de inclusão se traduza em ações concretas no curso dos próximos anos se faz necessário que o Brasil, a exemplo de outros paises, adote um conjunto de ações que fortaleçam a escola pública e conseqüentemente a ação pedagógica dos professores. A educação de qualidade começa pela otimização do tempo escolar que precisa ser ampliado, passa pela organização dos espaços escolares e da gestão da escola e da sala de aula. A democratização da educação garantiu o acesso das crianças à escola, mas temos um desafio enorme em nosso País, que é promover as condições reais para o ensino, a aprendizagem e a educação dos nossos alunos. A escola cumpre seu papel de agência de formação, quando é capaz de educar TODOS os alunos e não apenas parte deles. Entristece-me muito falar de inclusão porque isto significa que ainda temos que brigar para que crianças não fiquem fora da escola. Por outro lado, alegro-me que o direito de TODAS as crianças brasileiras de se beneficiarem da escola esteja explicitado no texto da Política Nacional de Educação Especial. No Brasil já sentimos a concretização da política de inclusão, quando as redes de ensino começam a se organizar para acolher e oferecer as condições de aprendizagem a todo seu alunado. A escola, que entendeu o principio da inclusão, sabe que precisa rever práticas pedagógicas, não porque agora tem a presença de um aluno com deficiência na sala de aula, mas porque compreendeu que não pode ignorar a diversidade de seus alunos.

Ronice Quadros: No caso dos surdos, o maior desafio é promover uma organização escolar em que a língua de instrução seja a língua de sinais e a perspectiva de organização dos conhecimentos partam de uma construção visual, o que demanda um outro desafio: investir em cursos de graduação para a formação de professores surdos, educadores bilíngües (libras e português) e de intérpretes de língua de sinais.

5. De acordo com a nova Política, o atendimento educacional especializado é promotor do acesso ao currículo, tendo função complementar e/ou suplementar. Nesse contexto, qual o papel das escolas e instituições especializadas e qual o impacto desta proposta para a educação no Brasil?

Antônio Osório: É importante enfatizar que em sua especificidade, a educação especial tem suas origens em modelos não tradicionais de sistema escolar, fora de estrutura de escolarização, e sim do atendimento. Ela foi proposta dentro de um modelo de saúde referendado por discursos carregados por elementos de práticas pedagógicas, mas, em seus exercícios, se explicitam uma prática cultural em relação à deficiência ou a altas habilidades. Esses espaços, aos poucos, foram se institucionalizando por necessidades de segurança coletiva, como foi no caso do asilo, da casa psiquiátrica, da penitenciária, da casa de correção, do estabelecimento de técnicas de educação vigiada. Mesmo considerando que o modelo de exclusão, enquanto afastamento pelo desconhecido, a inclusão é o exame das possibilidades. É necessário incluir para conhecer. Isso leva a conceber, então, que a educação especial é fruto de uma rede de formações discursivas utilizadas em direções diferenciadas, descrevendo-as em um outro feixe de relações que não se detêm ao universo pedagógico e aos momentos atuais. A educação especial, compreendida como um fenômeno social, se insere nas dinâmicas de poder e torna-se, assim como a educação, uma ameaça à ordem instituída e palco de conflitos e contradições de interesses das mais diferentes ordens e objetivos, que não se limitam à própria deficiência ou altas habilidades, mas à rede de relações construídas e interesses outros, dos quais devem ser preservados ou rompidos, como é o caso do próprio financiamento da educação especial. Isso nos remete então a entender, na medida do possível, os discursos pelos quais as pessoas com deficiência instigam perguntas e as pessoas “ditas” normais, respondem umas às outras, mas não informam ao deficiente o que pensam, apenas o “usam” e definem o que fazer. Com isso, diferentemente dos discursos reguladores da educação especial (assistência, atendimento) o centro da reflexão tem que ser a garantia da escolarização. O atendimento educacional especializado, indiscutivelmente, tem que ter a função complementar ou suplementar, assim como as instituições especializadas ou as escolas especiais. Esse é o impacto da educação especial para o Brasil sair da assistência e ter como paradigma a escolarização, e com isto flexibilidade curricular, procedimentos e recursos pedagógicos visando à apredizagem dos educandos, avaliações e terminalidade, a partir das condições cognitivas de cada educando.

Maria Teresa Mantoan: A grande novidade da Política Nacional de Educação Especial é marcar a escola comum como lugar preferencial do atendimento educacional especializado, segundo o que prescreve a Constituição/88. A partir do que nos propõe a Política podemos inferir que o papel das instituições especializadas passará a ser mais forte e incisivo no sentido de garantir às pessoas com deficiência e a outros públicos da educação especial o que lhes é de direito, ou seja, a inserção total e incondicional no meio escolar, social, laboral, no lazer, nos esportes, na vida cidadã. As instituições especializadas avançarão, portanto, no cumprimento de seus ideais maiores, ao assumirem esse papel. As escolas especiais terão de buscar novos rumos, porque o ensino especial não é mais substitutivo do ensino regular e todos os alunos devem estar juntos, aprendendo, segundo a capacidade de cada um, nas escolas comuns. Esses rumos podem levar essas escolas a se transformarem em centros de atendimento educacional especializado – AEE. Essa transformação, no entanto, terá caráter temporário, provisório, porque a tendência é alocar, gradativamente, o AEE nas escolas comuns, como é prescrito nos textos legais referentes à educação em geral e à educação especial. Quanto ao impacto na educação brasileira, espera-se que a Política seja o marco de que necessitamos para uma tão esperada e necessária reviravolta educacional, que nos conduza à inclusão plena em todos os níveis e modalidades de ensino e à melhoria da qualidade dos processos de ensino e de aprendizagem.

Claudio Baptista: Ao abordar o atendimento educacional especializado, gostaria de discutir alguns pontos que emergem como centrais em outras questões propostas neste debate. Como ocorre, ou deveria ocorrer, a articulação entre o ensino regular e a educação especial? Como se configura a realidade atual com relação à educação inclusiva e quais os desafios a serem superados? Como o grupo de trabalho avançou na explicitação do lugar da educação especial no contexto de um sistema educacional inclusivo? Para discutir o atendimento educacional especializado, gostaria de iniciar dizendo que devemos acolher com cautela a afirmação “o atendimento educacional especializado é promotor do acesso ao currículo comum” contida na questão proposta aos debatedores. Considero que seria temeroso se a Política Nacional de Educação Especial restringisse a grande tarefa de “garantia de acesso ao currículo” ao atendimento educacional especializado. Essa garantia é algo muito mais amplo e depende de nossa capacidade de reinventar a escola, aprendendo com a tradição pedagógica de muitos, como Paulo Freire, que nos ensinam a valorizar percursos singulares de aprendizagem, a conceber a aprendizagem e o ensino como parte de um binômio indissociável, a reconhecer que aquilo que habitualmente chamamos de “currículo” precisa se alimentar de vida para que haja maior possibilidade de que cada aluno encontre sentido naquilo que deve aprender. Assim, essa não pode ser concebida como uma tarefa nem da educação especial apenas, e muito menos de um serviço da educação especial. Reconheço que o atendimento educacional especializado pode ser um recurso extremamente valioso para os sujeitos que são identificados como alunos com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades. Esse serviço, quando em sintonia com o projeto político pedagógico da escola, quando articulado às demais práticas docentes, quando não restrito à dimensão clínica do atendimento, quando não entendido apenas como um espaço físico diferenciado, poderá contribuir para que o aluno continue na escola e avance no seu aprendizado. A oferta de atendimento complementar ou suplementar, por profissional com formação em educação especial, deve fazer parte de um continuum de propostas que articulam a sala de aula do ensino regular e outros espaços educativos, sem prejuízo do acesso do aluno à sua classe de referência. Esse é um dos nossos grandes desafios: reconhecer que o atual momento histórico exige que discutamos as novas diretrizes não apenas para a educação especial, mas para a educação como um todo.

Soraia Napoleão Freitas: As instituições especializadas de educação especial passam a apoiar o processo de inclusão escolar dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, através da organização e oferta do atendimento educacional especializado. O impacto desta proposição é que o atendimento assume a função de complementar ou suplementar à escolarização e não mais substituindo esta. Sendo assim, o alunado da educação especial terá garantido seu direito à escolarização e à convivência e aprendizagem em ambientes heterogêneos e em contraturno, quando necessário, podem lançar mão dos recursos e serviços especializados que, dinamizados por professor especializado, potencializam as condições do aluno acompanhar o currículo escolar.

Eduardo Manzini: Algumas instituições especializadas já estão redimensionando os seus papéis, por exemplo, inserindo os seus profissionais para auxiliar diretamente professores do ensino comum que têm alunos com necessidades educacionais especiais matriculados em suas salas de aula. Porém, também existe grande diversidade de concepções sobre o atendimento do aluno com deficiência nas instituições. Um exemplo disso se refere ao ensino do aluno cego e com baixa visão. No estado de São Paulo, no passado, existiam várias instituições e lares-residência para o ensino desses alunos. Com o decorrer do tempo e com as legislações sobre os serviços de educação especial, o aluno cego ou com baixa visão passou a ser aluno da classe comum, recebendo atendimento especializado, em outro horário, nas salas de recursos, assim denominadas pela legislação. Essa ainda não é uma realidade brasileira, sabe-se que, em alguns estados da Federação, o aluno cego ou com baixa visão recebe atendimento especializado somente em instituições especializadas para cegos, não chegando a freqüentar classes comuns. O redimensionamento do papel das instituições não ocorrerá apenas com o documento da nova política. Sabemos que as mudanças serão decorrentes de fatores atrelados ao investimento (ou não) financeiro a essas instituições, pois a Federação, os estados e municípios é que financiam essas instituições, uma vez que o Estado, no passado, não assumiu, totalmente, a educação de alunos com deficiência, mas delegou às instituições. Na realidade, isto parece ser contraditório, porém, faz parte das contradições do sistema. Por sua vez, o Estado, para assumir a sua parte, deverá fazer investimento nos sistemas educacionais para torná-los inclusivos. Caso isto não ocorra, o impacto será pequeno.

Claudia Dutra: A partir da defesa de uma política de Estado para a inclusão, que ultrapassou o discurso da tolerância levando os governos e as instituições sociais a adotarem como princípio o direito à igualdade e à diferença na construção das políticas sociais, os movimentos pela emancipação e cidadania das pessoas com deficiência foram grandes protagonistas dos avanços nas políticas de educação especial nas últimas décadas. O grande mérito desta Política, agora consolidada no Brasil, é afirmar o direito de todos à educação, invertendo o foco da “deficiência” para a eliminação das barreiras físicas, pedagógicas, de informação e comunicação, entre outras que se interpõem no processo educacional e delimitam fronteiras entre alunos denominados “normais” e “especiais”. Com relação às escolas especiais, no contexto dos avanços que viemos alcançando em nosso País na política desta área, fica claro que as instituições especializadas, que têm acúmulo e experiência no campo pedagógico e reconhecem o valor da inclusão para o desenvolvimento dos alunos, serão grandes parceiras das escolas de ensino regular para orientar no processo de formação dos alunos e professores. A nova Política tem ênfase no fortalecimento da inclusão, onde a escola especial oferece serviços, recursos e profissionais que a escola regular não dispõe, atua diretamente no atendimento educacional especializado quando couber, além da articulação efetiva com os professores nas salas de recursos, no desenvolvimento de estudos, no planejamento, avaliação e produção de materiais específicos, entre outros essenciais para o sucesso de uma proposta pedagógica. O impacto da Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva será para toda a escola: para os alunos que passam a ser atendidos nas suas especificidades, para os professores que aprendem a trabalhar em equipe e fortalecem sua prática pedagógica, para a gestão e o desenvolvimento do projeto da escola que avalia e reestrutura o processo educacional no contexto do ensino regular e especial, e no financiamento do atendimento educacional especializado que se amplia para atender o conjunto do sistema público de ensino regular.

Ronice Quadros: No caso dos surdos, atendida a Declaração de Salamanca, em seu artigo 19, e o Decreto nº 5626/2005, pressupostos da formulação da atual política, será garantida a educação bilíngüe. O impacto de um trabalho lingüístico eficiente na Libras e no Português, como segunda língua, terá repercussão para os milhões de surdos que estão fora da escola se vier associado a uma revisão gradativa do que se entende por educação de surdos e uma dicotomia entre complementar e regular. Não se pode entender que competências, por exemplo, necessárias para o acesso ao conhecimento de uma forma visual fiquem restritas a espaços suplementares, é preciso que tomem forma na dinâmica regular de construção dos conteúdos. Isso implica o sistema educacional se rever inteiramente a partir das diferenças.

6. Considerando o processo de formulação da Política, que buscou consolidar os direitos com relação a uma educação de qualidade para todos, como o grupo de trabalho avançou na explicitação do lugar da educação especial no contexto de um sistema educacional inclusivo?

Antônio Osório: A formulação da Política não só garantiu a consolidação dos direitos constitucionais com relação a uma educação de qualidade para todos. Possibilitou, durante mais de um ano, um exercício participativo de contribuição de vários segmentos sociais, numa dinâmica democrática de respeitar e preservar as expectativas e as experiências dos educadores da educação especial, das entidades representativas e comprometidas com a transformação do paradigma da assistência para a inclusão escolar. Com isso, a educação especial demarca seu papel pedagógico num movimento pela perspectiva da inclusão escolar da pessoa com deficiência ou altas habilidades. Esse movimento, enquanto política, fundamenta-se em pressupostos que reconhecem e valorizam a diversidade como característica inerente à constituição de qualquer sociedade, a partir de princípios éticos, no cenário dos Direitos Humanos, sinalizando a necessidade de se garantir o acesso e a participação de todos, independente das suas peculiaridades. Coloca em pauta aspectos relacionados à cidadania que, no primeiro momento, deve ser compreendido pelo fato de que não há liberdade sem igualdade, nem tampouco igualdade sem liberdade. Em função disso, todas as discussões foram marcadas pela expectativa de um movimento pela inclusão e suas prerrogativas foram marcadas por uma proteção geral e abstrata, porém, voltado para contextos sociais imaginariamente inclusivos, mas, acima de tudo, democráticos. Indiscutivelmente, a educação especial no contexto de um sistema educacional inclusivo, não pode ser entendida como uma especificidade, mas, sim, como uma parte da totalidade da educação e da própria sociedade brasileira. Torna-se vital gerar mudanças no processo exercitado até então e, ao mesmo tempo, garantir ações educativas que possibilitem o rompimento de barreiras e de rótulos construídos durante vários séculos pela própria sociedade sobre as pessoas com deficiência, e que resultaram em dificuldades e limitações para viabilizar instrumentos coletivos de superação de barreiras impeditivas ao exercício da cidadania. É necessário romper preconceitos culturais.

Maria Teresa Mantoan: Nesse grupo de trabalho buscamos sempre esclarecer o lugar da educação especial, na atualidade, pontuando-o sem meias palavras, sem fugir do que pretendíamos firmar como posição coletiva diante do que essa modalidade de ensino representa na visão de uma escola para todos. Discutimos, aparamos arestas de nossas idéias e na minha percepção conseguimos “dar o nosso recado”. O texto corresponde ao avanço que tivemos no nosso entendimento dos progressos da educação especial. Somos todos profissionais com um passado nessa modalidade de ensino, mas com um olhar para o seu futuro. Essa situação peculiar levou-nos a precisar exaustivamente o texto da Política, para refletir com exatidão o lugar da educação especial nos sistemas educacionais inclusivos, como esperamos que sejam os nossos. O convívio e o compartilhamento de idéias com outros colegas do grupo revigoraram a minha convicção de que precisamos pensar e sonhar juntos para chegarmos mais depressa ao que tanto almejamos. Foi uma experiência educacional que me fez, mais uma vez, reconhecer, valorizar e problematizar as diferenças!

Denise Fleith: Podemos encontrar a resposta na nova Política Nacional de Educação Especial: “A educação especial é uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, realiza o atendimento educacional especializado, disponibiliza os serviços e recursos próprios desse atendimento e orienta os alunos e seus professores quanto a sua utilização nas turmas comuns do ensino regular”. Em outras palavras, o ensino especial não deve ser considerado isoladamente do ensino regular ou visto de uma forma estanque, que leve à perpetuação de rótulos e estereótipos. Ao contrário, este movimento deve ser dinâmico, intercambiável e renovador. Ou seja, como o ensino regular pode contribuir para o ensino especial e vice-versa. Isto requer uma mudança de mentalidade e uma nova maneira de se conceber não só a Educação Especial, mas também a Educação em geral. Esta é a proposta da nova Política.

Soraia Napoleão Freitas: Com a implementação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, a educação especial passa a integrar o sistema de ensino, assumindo sua especificidade de forma articulada à educação comum. Essa proposição e este avanço de entendimento foi possível devido à organização de um amplo processo de discussão, que buscou contemplar os diferentes órgãos representativos da educação especial do País. Esse exercício, pautado nos princípios da gestão democrática, permitiu avançar a discussão, tendo em vista a superação do paradigma integracionista e do entendimento assistencialista que permeou historicamente as práticas em educação especial.

Maria Amélia: A nova política deixa claro que a Educação Especial é uma modalidade que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, que complementa e suplementa e que deve prover o ensino educacional especializado, disponibilizar os serviços e recursos próprios desse atendimento, orientar alunos e professores. Isso “deve” ou “tem que” provocar uma mudança de mentalidade no âmbito educacional. Mas não vai ser fácil em um país em que o ensino especial foi sempre muito segregado.

Rita Vieira: O trabalho desse grupo, de orientação democrática, abriu espaço para a manifestação dos diferentes segmentos da sociedade que participaram e contribuíram para o delineamento do texto da Política. Diferentes concepções a respeito de inclusão e de educação especial entraram em confronto e foram se afirmando até chegar na construção do texto que ora se apresenta. No meu entendimento foi um processo com ampla participação social cuja vantagem se expressa por uma Política que representa o conjunto dos diferentes segmentos a quem ela se aplica.

Eduardo Manzini: O grupo de trabalho que fez parte da formulação da Política, em minha opinião, refletiu o que acontece na comunidade escolar. Muitas vezes, as opiniões eram (e são) divergentes sobre pontos específicos. O avanço, do grupo em si, foi na direção de caminhar para um objetivo comum: indicar diretrizes para orientar os sistemas de ensino num contexto inclusivo. O grupo assumiu a proposta de elaborar o documento e, uma vez aprovados os pontos principais, as diferenças deveriam ser superadas pelo coletivo. O avanço do documento foi delimitar, de forma mais clara, a população a ser atendida pela educação especial e no que deverá consistir o atendimento educacional especializado. Esses dois pontos deverão delinear as ações futuras.

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