terça-feira, 3 de março de 2009


Este livro da autora Nye Ribeiro e publicado pela editora Papirus é excelente para ser trabalhado na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
Vem acompanhado de um projeto de atividades que tem como objetivo geral "possibilitar um trabalho com os temas transversais Educação Ambiental e Educação para a Paz, por meio de um projeto, envolvendo as seguintes áreas: Português, Ciências, Educação Física, Educação Artística e filosofia.
Este blog tem por objetivo auxiliar em pesquisas, consultas e dar sugestões de livros e filmes.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Revista Inclusão(Julho/Outubro de 2008)CAPA

CAPA

Secretaria de Educação Especial/MEC

Inclusão
Revista da Educação Especial

Volume 4 Número 2 julho / outubro 2008

Foto: rapaz com Síndrome de Down

Entrevista
Antonio Carlos Sestaro
Advogado, presidente da Associação de Pais de Filhos com Síndrome de Down na cidade de Santos/SP

Desenvolver a Educação Inclusiva: dimensões do desenvolvimento profissional
David Rodrigues


VERSO DA CAPA

Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria Executiva
Secretaria de Educação Especial

Comissão Organizadora
Claudia Pereira Dutra
Cláudia Maffini Griboski
Martha Tombesi Guedes
Martinha Clarete Dutra dos Santos
Rosângela Machado
Misiara Cristina Oliveira

Conselho Editorial
Nacional
Antônio Carlos do Nascimento Osório – UFMS
Claudio Roberto Baptista – UFRGS
Denise de Souza Fleith – UnB
Dulce Barros de Almeida – UFG
Eduardo José Manzini – UNESP
Marcos José da Silveira Mazzotta – Universidade Mackenzie
Maria Amélia Almeida – UFSCar
Maria Teresa Eglér Mantoan – UNICAMP
Rita Vieira de Figueiredo – UFC
Ronice Müller de Quadros – UFSC
Soraia Napoleão Freitas – UFSM

Internacional
David Rodrigues – Universidade Técnica de Lisboa, Portugal

Jornalista Responsável
Nunzio Briguglio Filho (007010/SC-MT)

Organização e Sistematização
Berenice Weissheimer Roth

Revisão Ortográfica
Lúcia Pinheiro / Link Design

Projeto Gráfico, Diagramação e Arte-final
Link Design

Fotografia
Maylena Clécia
Júlio César Paes de Oliveira

Agradecimentos às escolas visitadas e fotografadas
Escola Classe 315 Sul – Brasília/DF
Escola Classe 708 Sul – Brasília/DF
Escola Classe 304 Sul – Brasilia/DF
Escola Augustino da Reserva Indígena de Dourados/MS

Revista Inclusão é uma publicação semestral da Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação.
Esplanada dos Ministérios, Bloco L, 6º andar, Sala 600
70047-900 Brasília/DF
Telefone (61) 2104-8651
Cadastro via e-mail: revistainclusao@mec.gov.br
Distribuição gratuita
Tiragem desta edição: 50 mil exemplares

As matérias publicadas podem ser reproduzidas, desde que citada a fonte. Quando assinadas, indicar o autor. Artigos assinados expressam as opiniões de seus respectivos autores e não necessariamente as da SEESP, que os edita, por julgá-los elementos de reflexão e debate.

Indexada em:
Bibliografia Brasileira de Educação (BBE)/Inep
Latindex – Sistema Regional de Información en Linea para Revistas Cientificas de America Latina, el Caribe, España y Portugal.

Ficha catalográfica
CIBEC/MEC
Inclusão: Revista da Educação Especial / Secretaria de Educação Especial. v. 1, n.1 (out. 2005). – Brasília : Secretaria de Educação Especial, 2005-
ISSN 1808-8899
1. Inclusão educacional. 2. Educação especial. I. Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial.

4ª CAPA

Ministério da Educação
Secretaria de Educação Especial
Esplanada dos Ministérios Bloco L 6º andar Sala 600
70047-900 Brasília DF
Telefone 0800 61 61 61
seesp@mec.gov.br – www.mec.gov.br/seesp

Unesco
Fundação Nacional de Desenvolvimento da Educação FNDE
Plano de Desenvolvimento da Educação PDE
Ministério da Educação
Brasil um país de todos
Governo Federal


EDITORIAL – Página 1

A Revista Inclusão tem como finalidade impulsionar e fortalecer o desenvolvimento da educação especial na perspectiva da educação inclusiva no país, compartilhando idéias e trabalhos reconhecidos que apresentam novas formas de compreender e organizar os processos educacionais. Os temas discutidos e sistematizados nos artigos têm proporcionado aos educadores das redes públicas de ensino pensar acerca da concepção e das práticas pedagógicas inclusivas nas escolas regulares.
Nesta edição, as questões traduzem indagações e perspectivas para a construção de um sistema educacional que efetive o compromisso de assegurar a todos os alunos acesso, participação e aprendizagem, considerando as especificidades de cada um no processo de escolarização. Compreendido como ponto de partida para garantir o direito a uma educação de qualidade, o desenvolvimento inclusivo das escolas é pensado numa visão ampla, onde se insere a educação especial, com a finalidade de promover o acesso pleno ao currículo.
Diante deste propósito, nossos colaboradores abordam idéias em torno da gestação de uma mentalidade inclusiva, do letramento e inclusão, da experiência de inclusão escolar de alunos surdos indígenas em Dourados-MS e da pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na acessibilidade espacial, atividades lúdicas e promoção da inclusão; além de uma envolvente elaboração sobre as dimensões do desenvolvimento profissional, que apresenta os novos desafios da formação docente quanto aos saberes, atitudes e competências.
O enfoque da educação inclusiva, a articulação do princípio da igualdade de condições e valorização das diferenças na escola, fica claro na entrevista com o ex-presidente da Federação Nacional da Síndrome de Down, que na sua trajetória aprendeu e ensinou a importância da afirmação de políticas públicas que incorporam a organização do ambiente escolar como espaço inclusivo desde a educação infantil. Esta revista traz, ainda, opiniões, resenhas e informes, onde se destaca a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – ONU/2006, ratificada pelo Brasil neste ano.
Compartilhamos e comemoramos com todos os que lutam por uma sociedade inclusiva o Decreto 6.571, de 17 de setembro de 2008, que cria o financiamento, no âmbito do FUNDEB, para o atendimento educacional especializado dos alunos da rede pública matriculados em escolas comuns de ensino regular. Desse modo, dá seqüência à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva que define esta modalidade como responsável pelos recursos e serviços e oferta do atendimento educacional especializado aos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação.

Secretaria de Educação Especial


SUMÁRIO – Páginas 2 e 3

Editorial Página 1
Secretaria de Educação Especial/MEC

Entrevista PáginaS 4 a 6
Antonio Carlos Sestaro
Advogado, presidente da Associação de Pais de Filhos com Síndrome de Down na cidade de Santos/SP

Destaque Páginas 7 a 16
Desenvolver a Educação Inclusiva: dimensões do desenvolvimento profissional
David Rodrigues

Enfoque Páginas 17 a 45
Diferença e exclusão, ou... a gestação de uma mentalidade inclusiva
Marisa Faermann Eizirik

A inclusão de índios surdos da reserva indígena de Dourados – MS, em salas de aula comuns – relato de uma trajetória de sucesso e de desafios
Elza Correa Pedrozo
Mariolinda Rosa Romera Ferraz
Roselei Hall

Letramento e inclusão social e escolar
Ana Beatriz Machado de Freitas

Incluir brincando
Marta Dischinger
Aline Eyng Savi
Leonora Cristina da Silva
Carolina Vieira Innecco

Resenhas Páginas 46 e 47
O desafio das diferenças
nas escolas
Maria Teresa Eglér Mantoan (Org.)

Vermelho como o céu
Direção: Cristiano Bortone

Informes Páginas 48 a 50
Decreto nº 6.571
Convenção da ONU afirma Educação Inclusiva

Veja também Páginas 51 a 53
Educação Inclusiva: direito inquestionável
Martinha Clarete Dutra dos Santos

Opinião Páginas 54 e 55
60 anos da Declaração Universal e políticas de inclusão
Solon Eduardo Annes Viola

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS – Páginas 56 a 58

ENQUETE – Página 59

Destaque

DESTAQUE – Páginas 7 a 16

DESENVOLVER A EDUCAÇÃO INCLUSIVA: Dimensões do desenvolvimento profissional

David Rodrigues – Doutor em Ciências da Motricidade Humana na área de Educação Especial e Reabilitação (UTL/FMH), professor da Universidade Técnica de Lisboa, e coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva (www.fmh.url.pt/feei)
e-mail: drodrigues@fmh.utl.pt

Resumo
A disseminação do modelo de Educação Inclusiva, nomeadamente pela inclusão de alunos com condições de deficiência na escola regular, origina novos desafios para a formação de professores. Já não se trata de formar professores para alunos que são educados num modelo segregado, mas, sim, professores que são capazes de trabalhar com eficácia com turmas assumidamente heterogêneas. Para isto é necessário um novo olhar sobre os saberes, as competências e as atitudes que são necessárias para se trabalhar com classes inclusivas. Realça-se, ainda, a importância das estratégias de formação como inseparáveis do processo de formação: a inovação e a valorização da diferença são partes essenciais da formação de professores.
Palavras-chave: formação de professores, educação inclusiva.

Abstract
The growing process of including pupils with special educational needs, in the regular schools, became a new challenge for teacher’s education. This is a new challenge considering that the present aim is not “Special Education” in “Special Schools” but to attend in the regular schools the heterogeneous needs of the population. It is necessary to train teacher to present a wide range of competencies to work in heterogeneous classes. This implies a new “look” over the knowledge, the competencies and the attitudes that teachers need to be efficient in Inclusive Education. In this paper we present a reflective analysis about which kind of teacher education – including contents, experiences and strategies – is needed to provide the teacher with the skills he/she needs to act in Inclusive schools.
Key words: teacher education, inclusive education.

Introdução

A formação de professores encontra-se, hoje, em profundas mudanças tanto do ponto de vista de conceitos e valores como de práticas. A este fato, não é estranho que as competências que se esperam que o professor domine se revelem cada vez mais complexas e diversificadas. Espera-se que o professor seja competente num largo espectro de domínios que vão desde o conhecimento científico do que ensina à sua aplicação psicopedagógica, bem como em metodologias de ensino, de animação de grupos, atenção à diversidade etc. Isto sem considerar as grandes expectativas que existem sobre o que o professor deve promover no âmbito educacional mais geral, tal como a educação para a cidadania, educação cívica, sexual, comunitária, entre outras. Alguns autores têm, por isso, denominado a missão do professor na escola contemporânea como uma “missão impossível” (BEN-PERETZ, 2001).
Poder-se-ia pensar que este problema se resolveria com a adição de mais conteúdos à formação e, eventualmente, com a extensão dos currículos de formação. Mas não parece ser esta, certamente, a solução. Não é a simples aquisição de mais conhecimentos de índole teórica que fará o professor mais capaz de responder aos numerosos desafios que enfrenta. Isto porque dado o caráter multifacetado e autonômico da profissão de professor, esta implica modelos diversificados de formação, modelos que não se podem centrar na simples aquisição de saberes teóricos.
Deve-se, assim, proporcionar ao professor um conjunto de experiências que não só lhe revelem novas perspectivas teóricas sobre o conhecimento (perspectiva acadêmica), mas que também o impliquem em situações empíricas que lhe permitam aplicar estes conhecimentos num contexto real (perspectiva profissional).
Este caráter autonômico refere-se ao professor como “gestor local do currículo” (CAMPOS, 2000), salientando que o professor não é um técnico (no sentido em que aplica “técnicas” adequadas) nem um funcionário (no sentido em que executa estritamente indicações oriundas de uma cadeia hierárquica em que integra). A profissão de professor envolve um grande número de decisões que tradicionalmente são da sua responsabilidade e que lhe outorgam um elevado grau de autonomia no quotidiano da sua profissão. Por isso, é tão complexa a profissão e a sua respectiva formação e se torna claro o motivo pelo qual resulta insuficiente um simples incremento de formação teórica.
Uma outra mudança significativa refere-se à forma como se alterou a relação que se estabelece entre o professor e a informação. Proporcionar informação era, tradicionalmente, uma das componentes principais do processo educativo. Mas, a profissão docente deixou de estar tão intimamente comprometida com um ensino baseado na informação. O Livro Branco, publicado pela União Européia, em 1995, sobre a “Sociedade Cognitiva” aponta para o caráter imperioso de transformar em conhecimento toda a plêiade de dados e informações que nos rodeiam, num processo renovado de assimilação, com vista a responder à globalização e à necessidade de se criar novos saberes (CASPAR, 2007).
É certo que, pelo menos teoricamente, todos os saberes do mundo estão ao alcance do cidadão comum (e isto inclui certamente os alunos). Dizemos teoricamente, porque, na verdade, existem informações que não são disponibilizadas ou que são disponibilizadas, mas pouco realçadas, ou mesmo disponibilizadas por vieses envoltos em critérios de verdade. Também não podemos ignorar que muito se fala mas também muito se cala: a informação disponível na rádio, televisão, internet, bases de dados etc. são representações da realidade e que, por isso mesmo, necessitam ser assimiladas, interpretadas, re-interpretadas, contextualizadas. O papel do professor mudou: de um transmissor de informação, ele passou a ser um facilitador do processo de aquisição de conhecimento. Este procedimento implica que para que a informação se transforme em conhecimento precisa ser contextualizada, refletida e, muitas vezes, completada. Esta é uma nova competência do professor e da escola.
Tomando como exemplo uma dilatada experiência na formação de professores na área das NEE, tanto no campo graduado como pós-graduado, vamos discutir os modelos e estratégias que nos parecem mais adequados para preparar os professores para os desafios da Educação Inclusiva.
1. Novos desafios

Os desafios de adequação dos modelos de formação às novas necessidades podem, talvez, ser sintetizados em cinco pontos principais:
1. Face ao período da vida profissional em que esta formação tem lugar. Tradicionalmente, a componente essencial da formação passava-se em uma fase pré-profissional num período que se convencionou chamar de “formação inicial”. Se pensarmos na profissão docente como uma das que se encontra mais exposta a mudanças e a compararmos com profissões semelhantes, concluímos que para poder fazer face ao rápido avanço do conhecimento que lhe é essencial, necessita adaptar modelos de formação em serviço ou permanente. Sabemos que esta mudança paradigmática não é fácil. Foi atribuído durante muito tempo à formação inicial o estatuto de “necessária e suficiente”. Hoje, busca-se que os professores se comprometam em processos de formação que se identificam com um modelo de “desenvolvimento profissional”, entendido como um processo contínuo, e durante toda a vida profissional que conduza o professor a tornar-se mais competente na resolução dos problemas com que se defronta no seu dia-a-dia (AINSCOW, 2007). Um exemplo interessante é a organização de formação que se verifica na Europa (Escócia). Trata-se de um modelo de formação em que o professor só é considerado formado se, após quatro anos de educação superior, tiver sido aprovado em dois anos de exercício profissional supervisionado. Não se trata de um modelo reciclado dos antigos “estágios pedagógicos”, mas de um modelo que visa habituar o professor a ver a sua profissão como sendo incompleta se for solitária e que, por isso, o alerta para a importância do trabalho cooperativo e da supervisão.
2. O papel que desempenha o trabalho cooperativo nas comunidades de professores é outro dos desafios atuais. O professor tem tendência para considerar os seus sucessos e insucessos como feitos pessoais. O planejamento, a programação, as estratégias, a gestão da sala de aula, a avaliação, entre outros, são processos que cada professor tem por tradição reservar para si. Ora a crescente complexidade dos programas, a heterogeneidade do comportamento dos alunos, das respostas institucionais das novas áreas curriculares etc. implicam que a profissão docente não seja desempenhada por professores sozinhos, mas por professores que trabalhem cooperativamente com colegas, outros profissionais, famílias. Têm sido experimentadas estratégias bem sucedidas de “redes de professores” (PARRILLA, 2000) que mostram a sua eficácia no fortalecimento das competências dos professores e na qualidade do ensino em geral.
3. Um outro desafio relaciona-se com a conciliação entre a teoria e as aptidões necessárias para atuar em Educação (FREITAS, 2006). Do lado da teoria temos a investigação, o conhecimento pedagógico e outros saberes; do lado das aptidões temos a experiência e o conhecimento específico da matéria a lecionar (HEGARTY, 2007). O que poderá ligar estes dois mundos que parecem tão próximos mas se encontram freqüentemente separados? Segundo Hegarty (op. cit.), o fator que pode ligar estes dois mundos é uma compreensão alargada da causa pela qual um aluno particular tem dificuldades. Estas dificuldades não podem ser só resolvidas pela teoria nem só pela experiência: necessitam sobretudo de um discernimento, de uma perspicácia (insight) do professor. Esta perspicácia, esta capacidade de conjugar o conjunto de conhecimentos e de experiência que se dispõe para tomar uma decisão adequada em relação à aprendizagem de um aluno com dificuldades, é um dos fatores que não pode deixar de ser enfatizado e desenvolvido em modelos de formação de professores.
4. Um outro desafio é o do desenvolvimento da Educação Inclusiva (EI). Cada vez que se fala de Educação Inclusiva é preciso distinguir qual o conceito que dela usamos. Usaremos o termo EI como um modelo educacional que promove a educação conjunta de todos os alunos independentemente das suas capacidades ou estatuto sócio-econômico. A EI tem por objetivo alterar as práticas tradicionais, removendo as barreiras à aprendizagem e valorizando as diferenças dos alunos. A Educação Inclusiva organiza e promove um conjunto de valores e práticas que procuram responder a uma situação existente e problemática de insucesso, seleção precoce ou abandono escolar. Promove a heterogeneidade em lugar da homogeneidade, a construção de saberes em lugar da sua mera transmissão, a promoção do sucesso para todos em lugar da seleção dos academicamente mais aptos e a cooperação em lugar da competição.
Na verdade, a escola não foi pensada para atender a heterogeneidade. Toda a estrutura e funcionamento da escola regular é mais confortável ao considerar a homogeneidade do que com a diferença entre os alunos. Mas o que é certo é que a heterogeneidade é cada vez maior nas nossas escolas e a premência de lhe dar uma resposta de sucesso é também cada vez mais inadiável. Em sociedades que prezam o seu desenvolvimento não é aceitável que existam alunos que abandonem a escola ou que, nela permanecendo, não obtenham sucesso. Na perspectiva da promoção da Educação Inclusiva existem novos recursos e novos olhares sobre os recursos existentes, que é necessário desenvolver. Mas, por certo que o professor com todo o conjunto de competências e experiências que tem é certamente o principal recurso em que a Educação Inclusiva se pode apoiar (FERREIRA, 2006). Portanto, para promover a Educação Inclusiva a questão não é, muitas vezes, a de encontrar mais pessoas ou pessoas com perfis profissionais diferentes, não é, talvez, encontrar novos recursos ou recursos diferentes; é, sobretudo, por meio de estratégias reflexivas, do trabalho cooperativo lançar um novo olhar sobre as práticas docentes, sobre a equipe e os recursos que a escola dispõe. Como diz Ainscow (op. cit.), as escolas e os professores sabem mais do que pensam que sabem. Aqui, como sempre, é importante reconceptualizar as finalidades da Educação.
Precisamos, assim, de um professor que, para além das áreas conteudísticas habituais de formação possa, ainda, conhecer e desenvolver um conjunto de práticas que permita aos alunos alcançar o sucesso, isto é, atingirem o limite superior das suas capacidades. Como se depreende, a resposta a este desafio da Educação Inclusiva parece ser algo que deveria estar disseminado, embutido em todas as matérias de formação. Será possível ensinar Psicologia Educacional sem referir e estudar os alunos diferentes pela precocidade, agilidade ou dificuldade no seu processo de aprendizagem? Será possível ensinar Metodologias de Intervenção sem mencionar como se ensina uma criança com problemas lingüísticos? Será possível ensinar Desenvolvimento Curricular sem fazer uma extensa referência às formas que podem tornar mais dúctil e mais flexível o currículo? Parece difícil responder afirmativamente a qualquer uma destas perguntas. A formação inicial de professores com relação à inclusão deveria toda ela ser feita contemplando em cada disciplina da formação conteúdos que pudessem conduzir a uma atuação inclusiva. Conhece-se o argumento que mais impede este modelo: nem todos os formadores sabem como lecionar nas suas áreas disciplinares estes conteúdos. E a questão é: se não sabem, vamos encarar esta situação de modo a que aprendam, dado que esta falta de competência dos formadores poderá criar graves problemas para o sucesso dos alunos. Não podemos encarar os formadores como “completos”, mas como profissionais em aprendizagem. Até que se possa chegar a um modelo em que a formação esteja disseminada em todas as áreas curriculares, vamos tendo nos cursos de formação inicial de professores disciplinas com o título de “Educação Especial”, ou “Necessidades Educativas Especiais”, ou outras. Temos, assim, um currículo de formação para os alunos “normais” e uma disciplina para alunos “especiais” o que, sem dúvida, não é uma contribuição à partida para a criação de ambientes inclusivos.
5. Um outro desafio ainda é como se podem interligar os diferentes níveis de formação. Em muitos sistemas educativos existem lugares específicos para professores cuja função é apoiar a aprendizagem de alunos com dificuldades. Esses professores podem designar-se como “Coordenadores de Necessidades Educativas Especiais” (“Special Educational Needs Coordinator”, como, por exemplo, é no Reino Unido) ou por “Professores de Métodos e Técnicas” (Canadá). Em 2006 foi criado em Portugal um quadro de “Professores de Educação Especial”, cuja função é a de apoiar a aprendizagem de alunos que tenham uma condição de deficiência identificada através da aplicação da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), elaborada pela Organização Mundial de Saúde. O quadro de apoio e de delimitação do tipo de apoio e de quem pode usufruir desse apoio é um assunto de discussão pertinente (LIMA-RODRIGUES, 2007). Será que uma classificação deste tipo é adequada para identificar e planejar a intervenção de alunos com deficiência? Por outro lado, só os alunos com deficiências têm direito a um atendimento especializado? Quais são as competências dos professores que se encontram nas escolas com a função específica de apoiar alunos com dificuldades ou com deficiências? Em que âmbito devem exercer as suas ações? Como se ligam estes níveis de ação com os níveis exercidos pelos professores não especializados? Muitas dessas questões são muito presentes em Portugal.
Pensamos que existem três dimensões de formação que devem ser consideradas para capacitar os professores no apoio à Educação Inclusiva tanto no âmbito de especialização como nível generalista: os saberes, as competências e as atitudes.

2. Dimensão dos saberes

A dimensão dos saberes refere-se ao conjunto de conhecimentos de índole mais teórica que fundamentam as opções de intervenção. Estes conhecimentos vão desde aspectos mais diretamente teóricos, tais como o contacto com o pensamento e a teorização de diferentes autores, até (e sobretudo) trabalhos de investigação feitos em contextos reais que possam fundamentar a adoção de determinadas opções metodológicas.
No que respeita à Educação Inclusiva, esta dimensão de saberes envolve o conhecimento das características de desenvolvimento e de aprendizagem de alunos com condições não habituais. Envolve certamente a caracterização pedagógica destas condições não habituais de desenvolvimento. Tradicionalmente é dada uma grande ênfase ao estudo das condições de deficiência nomeadamente à etiologia e à patologia em termos clínicos. Precisamos, pelo contrário, reforçar o olhar educacional para as dificuldades encaradas sob o ponto de vista educacional; isto é, conhecer como se avalia, como se planeja, como se desenvolve um processo educacional e de aprendizagem em alunos com dificuldades ou com deficiências que, se não forem enquadradas, poderão influenciar a plena participação no processo educativo. Torna-se importante que o próprio modelo em que estes processos são estudados seja um modelo de inspiração educacional e não clínica. São conhecidos os traços distintivos de um e outro modelo: o modelo clínico mais centrado numa aproximação do “caso”, do seu diagnóstico, de prescrição a adotar em forma de um programa ou de um tratamento; o modelo educacional que mais se aproxima da concepção da aprendizagem como um processo, dos seus diferentes condicionantes, caracterizando situações complexas para as quais freqüentemente não existe uma forma inequívoca de atuação, mas, sim, aproximações sucessivas, no que Perrenaud (2000) definiu como “agir na urgência e decidir na dúvida”.
Adotar um paradigma educacional significa, por exemplo, que, devem ser realçadas em termos de formação as relações que tem o processo de aprendizagem de um aluno com deficiência mental com o de outro aluno sem deficiência mental. Realçar as continuidades, similitudes, os pontos comuns de desenvolvimento e os que não sendo comuns permitem por meio de estratégias específicas o trabalho em conjunto.
A dimensão dos saberes implica também conhecer formas diversificadas de animação de grupos, quer na esfera da decisão quer no nível do desenvolvimento do currículo, bases sobre o trabalho com famílias e com comunidades em diferentes escalas de compreensão ecológica.

3. Dimensão das competências

A dimensão das competências relaciona-se com o “saber fazer”, isto é, o conhecimento específico que o professor deve ter para conduzir, com sucesso, processos de intervenção em contextos assumidamente diversos.
Cabe aqui refletir sobre os objetivos do trabalho pedagógico com grupos assumidamente heterogêneos. Podemos dizer “assumidamente” porque todos os grupos são heterogêneos em termos de aprendizagem; a questão é se nós os tratamos como tal (considerando que a heterogeneidade é inerente ao grupo e, portanto, “natural”) ou se nos relacionamos como grupos (naturalmente) heterogêneos como se fossem problemáticos só pelo fato de não serem homogêneos. Trabalhar com grupos assumidamente heterogêneos é, pois, considerar em termos de avaliação, planejamento e intervenção, que a heterogeneidade é própria do grupo e a situação anômala seria a de encontrar um grupo de aprendizagem que se pudesse considerar homogêneo. Ainda refletindo sobre o trabalho com grupos assumidamente heterogêneos, cabe perguntar o que significa considerar as diferenças dos alunos. Como afirmamos antes, o simples conhecimento das diferenças não conduz inexoravelmente à adoção de modelos inclusivos (RODRIGUES, 2007). O conhecimento das diferenças entre os alunos pode servir para justificar a sua não inclusão. Pode servir, ainda, para encontrar estratégias e metodologias que levem à anulação dessas diferenças. Neste caso, conhecer as diferenças seria só o primeiro passo para as anular; considerar a heterogeneidade não seria mais que a primeira etapa de um processo educativo, que teria como finalidade promover a homogeneidade dos alunos.
Não é esse o objetivo da Educação Inclusiva. Acreditando que as diferenças são inerentes a todos os humanos e dando-lhes uma conotação positiva, a Educação Inclusiva procura usar as diferentes abordagens, entendimentos, valores e práticas dos alunos para enriquecer o processo pedagógico. Se assim pensamos, anular as diferenças significaria empobrecer e anular o poderoso efeito que ela tem para a educação em grupos diversificados. O objetivo da Educação Inclusiva não é, pois, anular as diferenças e, sim, entendê-las, mantendo-as ativas, encorajar o seu aparecimento e expressão enfim, torná-las presentes e utilizáveis para o processo educativo de todos os alunos.
Esta dimensão de competências tem vários momentos interligados: avaliação, planejamento, intervenção.
1. Avaliação. Trata-se de uma das áreas em que os professores sentem mais dificuldades, em particular quando procuram uma sistematização destas avaliações para passar às fases seguintes. Quando perguntados sobre quais as áreas, os instrumentos e os critérios de avaliação que usam, os professores de EE referem-se que usam conjunto de metodologias que são freqüentemente difíceis de sistematizar como fundantes de um processo de intervenção. Por exemplo, referem-se à observação dos produtos de aprendizagem, mas faltam os critérios que podem fazer desta observação uma avaliação. É também citada a utilização de testes (ex: “teste da figura humana”, “teste perceptivo-motor de Bender”, “testes psicomotores”, etc.), mas também sem uma idéia clara do significado educacional destas provas, isto é, de como é que elas contribuem para encontrar ou identificar áreas de intervenção. É essencial desenvolver modelos de avaliação educacional que permitam, numa lógica ligada ao processo educativo, encontrar indicadores que consintam a avaliação de fatores que influenciam a aprendizagem.
2. Planejamento encontra-se também com grandes dificuldades. Como se planeja uma aula ou um ciclo de atividades para um grupo assumidamente heterogêneo? Como é que o conhecimento dos alunos influencia o planejamento? De que forma a natureza dos objetivos influencia os enquadramentos que se propõem para a aprendizagem? Sabemos que os professores planejam mais em termos de conteúdos e menos em termos de estratégias necessárias para o ensino destes conteúdos. Também neste aspecto o trabalho cooperativo entre professores pode ser determinante.
3. Por fim, a intervenção propriamente dita com os seus múltiplos aspectos: conhecimento de estratégias de ensino gerais e específicas face a dificuldades que os alunos podem evidenciar (trabalho multinível, resolução de problemas, trabalho de projeto, pesquisa de informação etc.)
Uma questão determinante na aquisição de competência docente na área da Educação Inclusiva diz respeito às estratégias de formação que são usadas. Frequentemente, utilizam-se estratégias convencionais para a formação de profissionais que se espera sejam perspicazes, inovadoras, inclusivas e criativas na sua intervenção. De onde lhes vem, então, esta clarividência, e criatividade se ela não for explicitamente desenvolvida durante a formação? Será que professores que são formados com ensino magistral, uniforme, pouco claro sobre a importância do grupo, fazendo apelo exclusivo ao desempenho individual, menosprezando a criatividade e a iniciativa do aluno etc. podem depois ser convictos e eficazes promotores de práticas inovadoras, valorizadoras da diferença e promotoras de um conhecimento significativo para o aluno?
Quando se fala de modelos isomórficos em formação de professores quer-se dizer que os professores devem ter ao longo da sua formação profissional acesso a um conjunto de experiências em tudo semelhantes às que vão encontrar na vida profissional. Um professor que vai ser um agente de inclusão na escola será certamente um profissional mais conhecedor, convicto e eficaz se ele próprio tiver passado na sua formação por experiências semelhantes às que desejaria que os seus colegas e a escola adotassem em benefício da Inclusão. Neste aspecto faz também sentido incentivar uma grande mudança nos programas e estratégias de formação de professores.
4. Dimensão das atitudes

De pouco serviriam os saberes e as competências se os professores não tivessem atitudes positivas face à possibilidade de progresso dos alunos. É fundamental que os professores do ensino regular e de Educação Especial conheçam por experiência própria situações em que uma adequada modificação do currículo e das condições de aprendizagem consiga eliminar barreiras à aprendizagem e promover a aquisição de novos saberes e competências aos alunos. Um professor para desenvolver atitudes positivas não pode, como era tradicional, construir a sua intervenção baseado no déficit, mas, sim, naquilo que o aluno é capaz de fazer para além da sua dificuldade. Basta imaginar qual seria o futuro acadêmico de um jovem que tendo dificuldades, por exemplo, em Matemática, visse todo o seu currículo escolar ser referenciado à essa matéria. Assim, a construção curricular baseada na deficiência ou na dificuldade, para além de ter uma duvidosa probabilidade de sucesso para o aluno, evidencia uma visão do professor que mais realça as dificuldades do aluno do que as suas potencialidades. Para desenvolver expectativas positivas é essencial que o professor conheça múltiplas formas de eliminar e contornar dificuldades e barreiras e que possa, a partir deste trabalho, acreditar e fazer acreditar que o aluno é muito mais do que as suas dificuldades e que existem variadas formas para se chegar ao sucesso.
Conhecer casos de boas práticas, conhecer percursos pessoais para além da idade escolar, conhecer, enfim, depoimentos de pessoas que conseguiram construir vidas autônomas e úteis apesar de condições adversas, são certamente fatores que influenciam a formação de atitudes. Claro que quanto maior for a implicação e proximidade da pessoa com estes processos bem sucedidos, mais sedimentada e convicta será a sua atitude positiva face à possibilidade de sucesso de alunos com dificuldade.

5. Síntese

As reflexões que colocamos, anteriormente, talvez possam ser sintetizadas em doze pontos que, na nossa opinião, deveriam ser objeto de uma ponderada reflexão por parte dos responsáveis desta formação, qualquer que seja o nível a que trabalham. Como dissemos acima, este processo da formação de professores é um processo permanente de avaliação e de modificação que se encontra em todos os países. Esta dúzia de reflexões procura obviamente contribuir para a discussão nos seus diferentes aspectos.
1. A existência de uma disciplina de “Necessidades Educativas Especiais” ou análoga deverá evoluir para uma organização curricular que sedie os conteúdos, habitualmente ministrados nesta disciplina, em cada uma das disciplinas que compõem a ementa dos cursos de formação de professores.
2. Os conteúdos a tratar na formação inicial dos professores deverão dar ênfase às deficiências de maior incidência e menor intensidade realçando os aspectos psicopedagógicos e não os clínicos.
3. Os profissionais formados para dar apoio nas escolas deveriam ter uma formação específica que os habilitasse a trabalhar, também, com casos que evidenciassem dificuldades escolares não provocados por uma condição de deficiência. Alunos sem deficiência poderão ter dificuldades que necessitam de um apoio especializado.
4. Os professores que realizam um curso especializado de apoio a alunos com necessidades educativas especiais deverão adquirir uma sólida formação em modelos educativos, em que os alunos com NEE sejam educados em modelos inclusivos (incluindo as práticas supervisionadas).
5. O objetivo da Educação Inclusiva não é acabar com as diferenças, mas mantê-las ativas para poderem ser rentabilizadas na educação de todos os alunos. A anulação ou “impermeabilização” das diferenças impede que os alunos se confrontem com outros pontos de vista e realidades e por este motivo empobrece a qualidade da educação.
6. Os professores deverão ser formados com técnicas pedagógicas semelhantes às que se pretende que eles usem quando forem profissionais (ex: ensino multinível, aprendizagem e ensino cooperativo, modelos ativos e criativos de aquisição do conhecimento, hábitos de trabalho em equipe e práticas reflexivas etc.). Um exemplo deste ponto pode ser encontrado na maior intensidade de prática de acesso à Internet de professores que foram formados usando estratégias de pesquisa orientada no espaço virtual.
7. Os modelos de formação devem enfatizar a ligação entre a teoria e a prática, sobretudo, proporcionando a oportunidade de tomar decisões pragmáticas e fundamentadas teoricamente. O recurso a sítios virtuais de supervisão e acompanhamento é certamente um meio importante para que se efetue a integração teoria-prática.
8. A formação deve contemplar igualmente o domínio dos saberes, das competências e das atitudes. É essencial que cada um destes domínios seja submetido a um rigoroso escrutínio reflexivo, de forma a criar profissionais capazes de fazer uma avaliação equilibrada e pragmática do seu trabalho.
9. A formação por meio da resolução de problemas concretos é uma poderosa estratégia. Esta estratégia vale não só para a formação permanente, mas também para a formação inicial e especializada onde a investigação, a partir de casos e de contextos concretos, permanece como uma importante estratégia. A criatividade e a inovação podem e devem ser desenvolvidas por meio da implicação dos formandos em processos de investigação-ação.
10. Os locais de prática supervisionada (estágio) devem ser escolhidos em função dos enquadramentos em que se prevê que os futuros profissionais vão trabalhar e em total participação na vida quotidiana das escolas.
11. É necessário incentivar uma atitude de supervisão e de desenvolvimento profissional nos docentes de NEE. Para isto é essencial que existam espaços de informação disponibilizados via espaço virtual e momentos presenciais de partilha e discussão.
12. O modelo de alguém “de fora” (escola de formação ou outra estrutura) que venha até à escola para fazer o acompanhamento e aconselhamento de problemas sentidos internamente é de grande eficácia. A possibilidade de dispor de “amigos críticos” pode ser formalizada por parcerias de formação entre grupos de escolas e centros de formação.
Na década de 70/80 do século passado desenvolveu-se uma polêmica sobre se a escola faria ou não diferença no perfil dos alunos. Esta polêmica foi resolvida com aceitação afirmativa, que certamente a escola e os seus meios representam um modo importante de promoção do conhecimento dos alunos, instrumento de aquisição de múltiplas competências, meio de socialização e, sobretudo, um meio de promoção da cidadania e da mobilidade social.
Com o conhecimento que dispomos não é legítimo colocar em dúvida a utilidade da formação, quer seja inicial ou permanente. É, sim, possível questionar quais os modelos, quais os valores, objetivos e práticas sob as quais se realiza esta formação. É sobre este aspecto que este texto e as suas 12 reflexões finais procuram encontrar a sua pertinência como elemento de identificação e de discussão sobre tão importante questão.

Referências

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Enfoque

ENFOQUE – Páginas 17 a 45

ENFOQUE 1 – Páginas 17 a 23

DIFERENÇA E EXCLUSÃO – ou ... a gestação de uma mentalidade inclusiva

Marisa Faermann Eizirik – Marisa Faermann Eizirik é doutora em Educação, psicóloga e professora/UFRGS. Desenvolve pesquisas no campo da inclusão escolar, com ênfase nas relações de poder institucionais. Além de artigos publicados, é autora de Educação e Escola: a aventura institucional (AGE, 2001); Michel Foucault, um pensador do presente (Unijuí, 2005, 2a ed.) e co-autora de A escola (In)-visível (Editora da UFGRS, 2005, 2a. ed).
E-mail: meizirik.ez@terra.com.br

Resumo
Este artigo se propõe a examinar a questão da diferença e seus atravessamentos com o poder, tratando a inclusão pelo seu avesso, a exclusão, partindo do questionamento: não se trataria de tornar visíveis as forças que emperram as mudanças? As resistências que micropoliticamente cerram fileiras contra aquelas que insistem em trazer para o solo institucional novas práticas, outros saberes e formas de ensinar e de aprender. Utilizando a guerra como metáfora, defendo a idéia de ser a inclusão escolar um projeto revolucionário em processo de implantação que, por ser complexo, difícil e doloroso, demanda a gestação de uma mentalidade inclusiva, constituinte de novas formas de subjetividade.
Palavras-chave: diferença, exclusão, inclusão, poder, subjetividade.

Abstract
This article focuses the question of difference and its departing splittings with power. Inclusion is analysed inversely when the process of exclusion asks: what about making visible the allied forces that get stiffen? The micro-politics closes up the ranks that pushes away our new institutional practices, our knowledges in their manner of teaching and learning.
If we take the war as a metaphor, we stand up for our hypothesis that the inclusion, as a new paradigm of teaching, is a revolutionary process. It is a complex, difficult and painful process of implanting, that asks for an inclusive mentality in its constitution by forming the mind in new ways of subjectivity.
Key words: difference, exclusion, inclusion, power, subjectivity.

Inclusão escolar, uma guerra?

O debate sobre a inclusão escolar tem proporcionado intensa reflexão e numerosos artigos, trabalhos, experiências, questionamentos e muitas dúvidas, especialmente, em seus processos de implementação. Como forma de participar desse debate, pensei em compartilhar algumas reflexões sobre a questão da diferença e seus atravessamentos com o poder, examinando a experiência da segregação e suas implicações nos processos de exclusão e inclusão, articulando com as formas de subjetivação contemporâneas e suas implicações para a educação. Ou seja, penso em tratar da inclusão pelo seu avesso, a exclusão, e utilizar como metáfora, a guerra.
Por estarmos tão acostumados a excluir, não seria a inclusão escolar um projeto revolucionário que precisaria “decifrar as dissimetrias, os desequilíbrios, as injustiças, as violências, que funcionam apesar da ordem das leis, sob a ordem das leis, por meio das ordens das leis e graças a elas?”2 Não se trataria de tornar visíveis as forças que emperram as mudanças, as resistências que micropoliticamente cerram fileiras contra aquelas que insistem em trazer para o solo institucional novas práticas, outros saberes e formas de ensinar e de aprender?
A inclusão se apresenta como uma revolução, como contra-face da exclusão. Revolução porque está produzindo um turbilhão de movimentos que invadem todas as áreas, entram pelos mecanismos legais e forçam a presença – nas empresas, nas escolas, nos lugares públicos, nas diferentes formas de cultura, lazer e diversão, na sexualidade, n o trabalho. Como estamos enfrentando esse desafio? Quais as lutas que se travam no cotidiano das escolas, em seus processos de ensino regular, currículos, formas de avaliação, tempos e ritmos? Como se sacode o torpor da acomodação, do silêncio, do parado, do resignado ao seu lugar, do impedimento? Qual a lógica que se instala, rompendo com as idéias de homogeneização, totalidade, identidade, mesmidade, igualdade?
As antigas explicações e pressupostos que sustentaram muitas de nossas ações não servem para enfrentar esse desafio. Há inúmeras experiências acontecendo em instituições educacionais públicas e privadas, acolhendo crianças com sérias dificuldades de aprendizagem, portadoras de disfunções que as colocariam de antemão fora do ensino regular. Há teorias se desenvolvendo, pesquisas sendo feitas, seminários e congressos se realizando, mas, ainda nos deparamos com dificuldades, tropeçamos no embate com a diferença e a exclusão.

Por que a diferença incomoda tanto?

Um mito pode nos ajudar a pensar.
Na aurora da nossa civilização, como nos conta Ovídio nas Metamorfoses, a principal obra mitográfica tardia da Antigüidade, havia o Caos Primordial, em que ar, água e terra eram elementos misturados uns aos outros, como uma massa informe, indiferenciados. Com a intervenção de uma mediação simbólica, ocorre a intervenção de um deus cujo poder une, mistura, multiplica toda a criação: animais, vegetais, minerais, fluidos. Eros é o deus de toda a união, da afinidade universal, que assim dilui o magma que aprisiona todos os elementos, ganhando cada um deles espaço próprio. Tão poderoso quanto Eros, seu irmão, Anteros, é o deus da discórdia, tudo separa, desagrega, desune. Enquanto um é o deus da concórdia, o outro é o da desunião. Anteros nasceu quando Vênus preocupada com seu filho Eros, que permanecia criança, queixa-se à deusa Têmis, que a aconselha a dar-lhe um irmão. Por meio do enfrentamento com seu oposto, seu “outro”, Anteros, é que Eros começa a crescer. Oposição que se faz una, estranhamento que se indissocia, num mesmo ser, e se religa numa mesma perturbadora natureza.
O que nos diz a lenda? A diferença faz crescer, é uma oportunidade de sair dos limites, do conhecido, ultrapassar fronteiras, exercer outros olhares, experimentar novas experiências, mesmo quando essas possibilidades e esses impedimentos são constituintes de nossa humana natureza.
Esse, porém, não é um exercício fascinante apenas, pois a vida com o outro é difícil, e sem o outro é impossível. Gratificação e padecimento, traduzidos nesta lenda, convívio inquietante e perturbador com a alteridade, com nossa própria divisão e mal-estar, o horror e a angústia de nos enfrentarmos com o que está escondido, o secreto, a sombra. Como podemos pensar esse convívio com o que, num mundo complexo, exige rupturas, apostas e riscos?
O tema da diferença, atravessada pelos dispositivos de exclusão e suas implicações na formação da subjetividade, é significativo e desafiador para todos os que se dedicam a pensar a educação, e a educação especial de modo particular.
Sob o signo de novas linguagens, num mundo global integrado pela informação, com emoções e experiências cada vez mais sofisticadas, como pensar a noção de “diferença”? Em relação a que, a quem? Quem determina a medida, a fronteira? Quem levanta os muros das múltiplas separações? Quem dita as normas?
De acordo com Canguilhem, que estudou o problema da verdade e da vida, a norma não se define por uma lei natural, mas pelo papel de exigência e de coerção que ela é capaz de exercer em relação aos domínios aos quais se aplica. A norma é portadora, por conseqüência, de uma pretensão de poder. Ela não é simplesmente, e nem mesmo, um princípio de inteligibilidade; a norma é um elemento por meio do qual um exercício de poder se encontra fundado e legitimado.
Conforme Foucault

A regra não é um sistema formal. Eu a vejo como um preciso, real, cotidiano e, conseqüentemente, individualizado instrumento de coerção. O que me interessa é o constrangimento; como ele pesa nas consciências e como se inscreve nos corpos; como ele revolta as pessoas e como elas o combatem. É precisamente o ponto de contato, de fricção, de possibilidade do conflito, entre o sistema de regras e o interjogo das irregularidades, onde eu sempre coloco minha interrogação.

Este interjogo ocorre via dispositivos sustentados por técnicas, estratégias, instrumentos, táticas que fazem parte do exercício do poder. Esses conjuntos não consistem em uma homogeneização, mas muito mais em um jogo complexo de apoios que tomam, uns sobre os outros, os diferentes mecanismos do poder, que permanecem bem específicos. As relações de poder se elaboram, se transformam, se organizam, se dotam de procedimentos mais ou menos ajustados, constituindo-se em estratégias de poder cujos meios, postos em ação, fazem funcionar ou sustentam um dispositivo de poder.
O poder, portanto, é uma prática social constituída historicamente e produtor de subjetividade. Como sujeitos nos constituímos em redes, micropolíticas, em que os saberes são peças nas relações de forças dos dispositivos.

As separações, as exclusões...

Alguns de nós somos reconhecidos em nossos discursos e práticas, outros não. Alguns de nós somos percebidos como “normais”, outros não. Alguns de nós temos acesso à educação, à cultura, à socialização, à reprodução, ao trabalho, outros não. Somos todos participantes desse jogo, pois as formas de exclusão são próprias da civilização, como diz Foucault, esclarecendo que os regimes de verdade que se instalam – e constituem a cultura de uma época – trazem consigo diferentes formas de exclusão, juntamente com as ironias e contradições que permeiam esses processos, mostrando que as separações são paradoxais porque produzem, ao mesmo tempo, resistências, contemporâneas e integráveis às estratégias de poder. São porosas, misturadas, complexas. Constituem uma economia política da verdade. Estudando os grandes modelos de exclusão – dos loucos, dos prisioneiros –, mostrou que, na sociedade ocidental, as exclusões são acumuladas, nunca vêm sozinhas, e constituem uma separação original, um princípio estrutural, fundante, que impõe limites e determina lugares que, nestes tempos líquidos, são cada vez mais difusos, com fronteiras menos visíveis e delimitações menos previsíveis.
Ao analisar o princípio de separação, Foucault explica que em seu movimento perpétuo de se reconduzir a seu próprio limite, se enraíza a noção do “intolerável” que se quer escondido, separado, oculto, que está na base da separação, desde seu início. As técnicas e dispositivos pelos quais esses mecanismos se solidificam e se reconduzem, pela perpétua separação, se distribuem e se fortalecem por meio das disciplinas, do exame, do exercício do poder de normalização.
Foucault chama a atenção para os dispositivos de poder que permeiam a sociedade, para os jogos de coações e exclusões, dizendo que “sempre haverá indivíduos que, por não obedecerem às regras ou a elas resistirem, ficam colocados às margens dessa mesma sociedade. Esse resíduo esse escape, essa margem, se recorta na existência de quatro grandes sistemas de exclusão”.
Segundo este autor, há quatro grandes sistemas de exclusão: – em relação ao trabalho, com a produção econômica; – em relação à família e à reprodução da sociedade; – em relação ao discurso em relação ao sistema de produção de símbolos: a palavra de uns não é recebida da mesma maneira que a de outros; – em relação ao jogo: há sempre indivíduos que não ocupam, na relação com o jogo, a mesma posição que os demais: estão excluídos ou incapazes de jogar.
Há indivíduos, portanto, que estão excluídos em todos os sistemas (do trabalho, da família, da linguagem e do discurso, do jogo). São os resíduos de todos os resíduos, estão marginalizados da sociedade.
A cultura do lixo, ou o refugo humano

Mudaram as formas de repressão e os modos de exercê-la: mais sutis, disfarçados, os instrumentos repressivos se diluem no magma da sociedade pós-moderna, ou modernidade líquida, como caracteriza Bauman, em que os valores do capitalismo tardio produzem flexibilidade, mobilidade, versatilidade, transitoriedade, incerteza, necessidades transformadas em virtudes que, num movimento paradoxal, silencia e faz desaparecer essa mesma sociedade, através dos fluxos gerados pela supremacia do mercado e a crença na tecnologia.
Em sua análise, este autor descreve a existência da elite global, que toma todas as decisões econômicas importantes e que flutua além do controle humano; de uma sociedade excludente, que enfatiza a descartabilidade humana; o desaparecimento da confiança e a instalação da suspeita universal; a cultura do excesso e o enfraquecimento das relações interpessoais. As vítimas são as baixas humanas produzidas pelo progresso do próprio homem, ou o que Bauman chama de refugo ou lixo humano.
Esvaziada de confiança, saturada da suspeita, a vida é assaltada por antinomias e ambigüidades que ela não pode resolver.
A sociedade e as instituições desenvolvem mecanismos de separação, rotulação, localização - de pessoas, grupos, idéias. Estes mecanismos são poderosos produtores de verdades e de ações que regulam a vida das pessoas. Ao fazer isso, porém, produzem uma complexidade enorme de outros tantos movimentos, atravessando o campo social por forças de várias ordens, naturezas e intensidades.

O estranho em nós...

Em face da alteridade, produz-se um desassossego, um temor que acompanha o golpe no modelo identitário e um decorrente desamparo. Ficamos orfãos de conhecimentos e certezas que até então nos davam suporte. Quem sabe podemos aproveitar da perplexidade e do fascínio pelo novo – sentimentos que deram origem a todo o conhecimento –, como motores para pensar e inventar uma educação inclusiva?
Apesar das experiências de inclusão que pipocam por todos os lados, das estratégias que apontam caminhos em curso, há muito a se criar e desenvolver. O movimento acena com alguns passos, que começam por nós mesmos: onde estamos nesse movimento?
Retomo as palavras de Baptista, que analisa a situação da inclusão no Brasil a partir de questionamentos extraídos de encontros com professores em formação, e situando três pontos de reflexão - a inclusão, a prática docente e os sujeitos envolvidos, enfatiza a necessidade de diálogo com todos os envolvidos e, para isso, “o primeiro passo pode ser pensado em dois planos: auto-conhecimento e busca de referenciais. O movimento de conhecer-se é necessário para que possamos identificar muitas de nossas barreiras que agem nos encontros com o outro”.
Nem sempre o outro, percebido como perturbador, é o que está fora, distante: muitas vezes, o que incomoda é o “estranho em nós”, aquilo que percebemos como diferente em nós mesmos e com o qual não queremos nos defrontar. Assim, rejeitamos nos demais aquilo que não podemos tolerar. Coloca-se, então, a necessidade de reformular uma imagem narcisista que foi abalada, e abrir canais para a experiência do “diferente”.
Isso implica a guerra: contra o mesmo, contra o desejo de não se desacomodar, contra as prerrogativas de poder já estabelecidas e asseguradas, contra os nichos de saber consolidados
Até que ponto rupturas nos dispositivos de exclusão, dando abertura às experiências de inclusão, não estariam intrinsecamente ligados à produção de novas subjetividades? Subjetividade compreendida, de acordo com Foucault, como um processo sempre provisório, a relação consigo, que se estabelece por meio de uma série de procedimentos que são propostos e prescritos aos indivíduos, em todas as civilizações, para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la, em função de um certo número de fins.
Será que não precisamos inventar uma subjetividade que possa lidar com o estranhamento, produzir estratégias e táticas em que as diferenças façam parte da experiência, e não o mesmo, o igual, a repetição?
Será que podemos tolerar, e mesmo experimentar, o sentimento de orfandade que advém da perda das certezas, da vertigem produzida pelas rupturas nos modelos preestabelecidos, do embate com a realidade que é turbulência, perturbação, desordem, convívio com a diferença, num equilíbrio sempre provisório, móvel, multifacetado, complexo?
Educação e inclusão se constituem nessas redes, micropolíticas, em fluxos e devires inscritos em regimes de verdade e relações de forças, dentro dos quais vivemos e nos debatemos, mas cujos dispositivos – ainda que desvendados em alguns de seus regimes de visibilidade e de enunciação – se modificam e se atravessam em novos contornos e profundidades, continuamente nos desafiando a olhar, pensar e agir.
Estamos em meio a um processo de gestação. Buscamos novas formas, contornos, possibilidades, com todas as alegrias e sofrimentos que o acompanham.
Seria o caso de realizar uma reforma educacional, como fez a Espanha, constituindo um processo de gestação de uma mentalidade inclusiva, ao sancionar uma lei criando uma disciplina chamada Educação para a Cidadania? Esta disciplina visa o respeito ao diferente, ensinando às crianças valores constitucionais e direitos humanos, respeito e tolerância. Há indicações de filmes e textos, que tratam da desigualdade entre homens e mulheres, combatem a violência, a intolerância, o racismo, o anti-semitismo, a xenofobia. Ministrada nas 5ª e 6ª séries do ensino fundamental, e fazem parte do currículo básico.
Esse seria um modo de subjetivação, que se faz na relação mesma do sujeito com a cultura.
Freud, em seu ensaio O estranho nos faz percorrer a semântica dos termos heimlich, o familiar, e unheimlich, o estranho, em que mostra o encontro dos contrários. Ambos coincidem e se fundem, num mesmo nós, o conhecido que se tornou alheio, excluído da consciência, mas vibrante, habitante da experiência, núcleo de ditos e não ditos, fonte de inquietude, vivência do insuportável.
Morada de outras lógicas, habita o estranho outros mundos, percebe outras imagens, fala outras línguas, enxerga outras paisagens. Associado à angústia, o estranho não se confunde com ela, como destaca Kristeva16 pois, para além da intensidade e da sobrecarga do ego, com a vivência do “choque entre algo “muito bom” ou “muito ruim”, pode se inscrever como abertura em direção ao novo, numa tentativa de adaptação ao que é incongruente”.
Desse encontro, desse choque, desse desmoronamento de limites abre-se uma perspectiva face ao insólito, e com isso, a oportunidade da vivência de novas experiências.
Temos de nos livrar das tiranias – do pensamento fechado, do imperativo da ordem, da obsessão pela norma, da cobrança do “mesmo”, das filiações identitárias, dos currículos pasteurizados, dos confinamentos dos programas e avaliações, das disciplinas encompassadoras de ritmos e talentos.
No presente, com a fragmentação e a ruptura dos modelos dogmáticos e enrijecidos, do conhecimento universalizante e unívoco, da previsibilidade, da certeza, estamos diante de novas formas de construção de subjetividade.
Eros e Anteros somos todos. Não estaríamos, ao evitar a diferença, nos prevenindo contra o desconforto com esse estrangeiro que é, ao mesmo tempo, íntimo e secreto, duplo e opaco, destituído de forma, que inspira horror e que queremos ver fora, mas que retorna, constantemente, como fantasma, estranha presença do que nos é tão familiar e tão (in)visível?
É próprio da gestação a inquietude, a expectativa, o desejo de criar e conhecer o que cresce e se move, esse misterioso ser que está por nascer e que ainda não tem um rosto, mas já se apresenta como forma, como vida, palpável, concreta. No caso de uma mentalidade inclusiva, enfrentamos as dificuldades no cotidiano de cada escola, de professores, alunos e familiares. Todos sabemos o quanto é difícil e quão longe estamos de um porto de chegada. Haverá este lugar? Este momento? Talvez não se trate de chegar, mas de fazer a viagem, e desfrutar de cada momento dela, descobrindo encantos numa paisagem que se conhece ao percorrer.

Referências

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ENFOQUE 2 – Páginas 24 a 29

Uma trajetória de sucesso e de desafios: A inclusão de índios surdos da Reserva Indígena de Dourados-MS, em salas de aula comuns

Elza Correa Pedrozo1
E-mail: elzaeduc@hotmail.com
Mariolinda Rosa Romera Ferraz2
E-mail: mariolindaferraz@hotmail.com
Roselei Hall3
E-mail: roseleihall@hotmail.com
Orientadoras Pedagógicas integrantes da Coordenadoria de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação de Dourados/MS

Resumo
O presente artigo é um relato da inclusão de alunos indígenas surdos, habitantes das aldeias Jaguapirú e Bororó, do município de Dourados, estado do Mato Grosso do Sul (MS). Em primeiro lugar, contextualiza-se o referido município. Em seguida, apresentam-se os dados da realidade indígena em termos geográficos e socioculturais. Por fim, são relatados o início do processo de inclusão ao constatar a existência de alunos com deficiência, principalmente a surdez, nas Reservas Indígenas de Dourados, e, também, as dificuldades e necessidades que surgiram no atendimento educativo, social e cultural desses educandos. Sendo assim faremos um retrato da Educação Inclusiva e seu papel de atuação frente à sociedade indígena, enfatizando o trabalho realizado para o processo concomitante de ensino e aprendizagem de LIBRAS, Língua Indígena e Língua Portuguesa e seus desafios.
Palavras-chave: educação inclusiva, inclusão de alunos indígenas surdos, ensino trilíngüe.

Abstract
This article is a report of the inclusion of deaf indigenous students who live on the Jaguapirú and Bororó reservations, in the municipal district of Dourados. First of all, facts relating to this municipal district are presented. Then, facts relating to the reality of indigenous life are presented in geographic and social-cultural terms. Finally, the beginning of the process of inclusion is related, having verified the existence of handicap students, principally the deaf, in the indigenous reservations of Dourados, MS, and also the difficulties and needs that arise in their education and social and cultural inclusion. Having related the facts, we paint a picture of Inclusive Education and its practice in the indigenous society, emphasizing the work accomplished through the program of concurrent language teaching and learning found in Libras, Indigenous language and Portuguese language, and its challenges.
Key words: inclusive education, deaf indigenous students inclusion, trilingual education.

Introdução

A inclusão de alunos índios surdos da Reserva Indígena de Dourados/MS na sala de aula comum testemunham os desafios enfrentados no processo de inclusão, pois, além da deficiência, abrange línguas diferentes. O processo de ensino bilíngüe (LIBRAS – Língua Portuguesa), natural na educação inclusiva de pessoas com surdez, transforma-se em ensino trilíngüe (LIBRAS – Língua Indígena: Guaraniy-Kaiowá ou Terena-Aruak – e Língua Portuguesa). Além disso, soma-se nessa diversidade a necessidade de conquista, de resgate da auto-estima, de conscientização de que todo ser humano é capaz de aprender e de se desenvolver intelectualmente por meio da estimulação dos sentidos remanescentes e emprego de outros códigos que não aqueles convencionais e convencionados no meio dito “normal”. Enfim, o processo ensino-aprendizagem na Educação Especial, particularmente na Educação Escolar Indígena, é desafiador, contudo, exitoso.
Conhecendo a cidade de Dourados

Com uma área de 4.028 km2, o município de Dourados, criado em 20 de dezembro de 1935, hoje, segunda maior cidade do estado de Mato Grosso do Sul, com cerca de 164.949 habitantes (IBGE, 2000), é uma região pólo em franca expansão de desenvolvimento agropecuário, comercial e universitário. Além disso, é pólo também do Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, da Secretaria de Educação Especial/MEC. Foi integrada a este programa devido ao número de habitantes, à situação geográfica dentro do estado (próxima da fronteira e da capital) e pelo seu reconhecido trabalho com a educação especial.
A prefeitura de Dourados conta com uma administração popular, desde 2001, comprometida com a valorização das minorias, entre elas, as pessoas com deficiência e os povos indígenas. Dessa forma, o governo municipal, já no primeiro ano de seu mandato, implantou na Secretaria de Educação, as Coordenadorias de Educação Especial e de Educação Escolar Indígena: uma proposta inédita na região sul do estado.

Educação especial em Dourados

O (re)conhecimento da necessidade de adoção de uma política de inclusão se deu por dois caminhos: ao se reconhecer o grande número de alunos atendidos em escolas especiais (APAE, Pestalozzi), e pelas solicitações dos pais para a matrícula de seus filhos no sistema regular de ensino.
Diante dessa realidade, constatou-se que era necessário capacitar os educadores para o atendimento de alunos com deficiência em escolas comuns. Portanto, desde sua implantação a Coordenadoria de Educação Especial trabalha com o objetivo de formar os educadores da rede municipal de ensino para o atendimento de alunos com deficiência. Esse objetivo está pautado na política nacional de inclusão, na política da administração municipal e na demanda existente em Dourados.
Para promover com eficácia essa política, a Coordenadoria Municipal de Educação Especial tem buscado subsídios teóricos, práticos e, inclusive, financeiros, no Ministério da Educação – MEC/FNDE.
No município, a Educação Inclusiva é um movimento que compreende a educação como um direito humano fundamental e base para uma sociedade mais justa e solidária. Constitui um espaço para que os educadores da educação comum e especial, alunos, pais, possam criar juntos escolas democráticas e de qualidade, preocupando-se em atender a todos os alunos, considerando suas características, e, a partir delas, organizar uma proposta de atendimento das diferentes necessidades educacionais especiais.

Educação escolar indígena em Dourados

Nos primórdios da criação do município, não havia nenhuma política de atendimento escolar da população indígena. Com o passar dos anos, a missão evangélica Caiuá iniciou uma atividade de escolarização dos índios, a qual resultou na fundação da Escola Francisco Meireles, mas não expandiu muito suas ações. Até o ano de 1990, a reserva indígena de Dourados, composta por duas áreas, as Aldeias Indígenas Jaguapirú e Bororó e Terra Indígena Panambizinho, contava com apenas sete salas de aula para atendimento de toda a população em idade escolar.
Mesmo diante dessa precariedade de espaço, os indígenas tinham acesso ao ensino fundamental até a 4ª série. Porém, a prática pedagógica baseava-se nos currículos escolares e calendários das escolas regulares dos não-indígenas, e, portanto, não atendia aos anseios da cultura indígena e não respeitava sua vivência. Por isso, muitos dos estudantes indígenas abandonavam a escola.
Para dirimir esses problemas foi criada, em 1992, a Escola Municipal Tengatuí- Marangatú, que significa “lugar de ensino eterno”, na época com 10 salas de aula. Paralelo à sua criação, o município passou a se responsabilizar por todo o processo de organização pedagógico e administrativo e também pelo oferecimento da educação às populações indígenas. Atualmente, a Escola Tengatuí oferece educação infantil (pré-escolar) e o ensino fundamental de 1º ao 9º anos, atendendo um total de 600 alunos das etnias Terena, Guarani-Nãndeva, Guarani- Kaiowá e mestiços. Desse total, 24 turmas são atendidas pelo Projeto de Ensino Diferenciado, ministrado em língua indígena (materna) e língua portuguesa, considerando-se os processos de aprendizagem da criança com a cultura etnicamente diferente.
A partir de 1997 aprofundaram-se as reflexões em torno da implantação de uma Educação Escolar Indígena específica e diferenciada, que culminou com a Implantação do Projeto de Ensino Bilíngüe, em 1999.
A partir de 2001, a administração popular sentiu necessidade de ampliar o atendimento da população indígena, desenvolvendo, então, uma política que atendesse as necessidades e anseios dos índios em todos os aspectos como saúde, educação, assistência social e moradia. Por isso criou a Coordenadoria de Educação Escolar Indígena, a qual vem discutindo com os professores indígenas, com autoridades locais e nacionais as bases legais, as implicações pedagógicas e o currículo próprios para o processo de ensino e aprendizagem dessa população.
Entre os avanços alcançados estão a fundação de três escolas indígenas – Escola Indígena Pai-Chiquito, Escola Indígena Araporã e Escola Indígena Agustinho –, da categoria Professor e Funcionário Administrativo Indígenas, Concurso Específico para estas categorias e a ampliação do atendimento do número de alunos índios, que, atualmente, é de 2.395 alunos na Educação Escolar Indígena (Censo escolar 2006).

Conhecendo a realidade indígena

Segundo as estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000), o País registra cerca de 345 mil índios de 215 etnias que falam 180 línguas diferentes. Cada grupo étnico varia entre populações de 30 a 50 mil índios que vivem em aldeias. Além desses ainda há os desaldeados, estimados entre 100 a 190 mil.
De acordo com os dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), o estado do Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população indígena do Brasil etnicamente diferente. Entre os reconhecidos estão os povos: Guató, Kadiwéu, Terena, Guarani- Kaiowá, Guarani- Nãndeva, e os povos indígenas não reconhecidos: Kamba, Kinikinau e Atikum.
Em Dourados localiza-se a maior Reserva Indígena do estado e do Brasil em duas áreas: as aldeias Jaquapiru e Bororó, na cidade de Dourados, e Panambizinho, no distrito de Panambi, perfazendo uma população de 10.258 indígenas (Funasa, 2005).
A Reserva de Dourados é composta das etnias Guarani-Nãndeva e Guarani-Kaiowá, as quais pertencem ao mesmo tronco linguístico lingüístico (o tupy-guarani) e os Terena, do tronco lingüístico Aruak , além de mestiços (índios com índios de etnias diferentes e índios com não índios). Todos vivem em uma área de aproximadamente 3.560 ha (três mil e quinhentos e sessenta hectares).
O espaço territorial da Reserva Indígena de Dourados, – as aldeias Jaquapirú e Bororó –, subdivide–se em microrregiões próprias formadas por alguns grupos macro-familiares, que, no caso dos Guarani-Nãndeva e Guarani-Kaiowá, estendem-se para parentes que não se restringem aos laços consangüíneos, mas inclui uma gama complexa de relações interpessoais e sociais, as quais determinam práticas de controle político-econômico e cultural sobre os habitantes dessa determinada região da reserva.
A área da aldeia Jaquapirú é habitada por maioria Guarani, mas os Terena também se concentram quase que exclusivamente nesta área. A área Bororó é habitada por maioria Kaiowá. Já a área do Panambizinho localiza-se a 25 km da cidade. Mantém uma cultura tradicional com uma população de 280 habitantes, dentro de uma área de 1.240 ha (um mil duzentos e quarenta hectares).
O contato com os não-índios, uma vez que a Reserva Indígena de Dourados fica a menos de 3 km da cidade, fez com que muitos índios acabassem absorvendo e aprendendo uma nova língua: o Português. O contato maior ou menor com a população não-índia é determinante para a existência de bilingüísmo e, por vezes, até da influência de três ou mais línguas. De forma geral, são poucos os que ainda cultivam o monolingüísmo
Essa realidade implica numa organização política, social e cultural, ou seja, uma população numerosa que vive numa pequena área de terras na qual há conflitos devido a sobrevivência. A maior preocupação entre eles é manter viva a cultura indígena em razão da proximidade com a cidade. Tal interferência causa grandes choques culturais e mudanças no modo de vida entre índios e não-índios. Portanto, há necessidade de mais estudos e também ações que priorizem o direito de viver enquanto ser humano com cultura própria.

Projeto Índio Surdo

É sabido que as culturas indígena e não-indígenas compreendem, de forma diferenciada, a existência de pessoas com deficiência. Por isso, mesmo tendo uma cidade muito próxima da reserva indígena, não se tinha conhecimento de índios com deficiência. Foi por causa dos avanços nas discussões das questões indígenas e da educação especial, promovidas pela Secretaria Municipal de Educação (Semed), que se tomou conhecimento da existência de índios com surdez na Reserva de Dourados.
Conhecedores dessa realidade, os profissionais da educação passaram a desenvolver um projeto de reconhecimento desta população. Quem são? Quantos são? Como vivem? Quais as necessidades educacionais especiais? Para tanto, contaram com a parceria da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), da Funai e da Secretaria Municipal de Assistência Social.
Primeiramente, recorreu-se às lideranças indígenas para o conhecimento e auxílio no levantamento de dados mais precisos junto às famílias. Após ser estabelecida uma série de contatos, os quais resultaram na aceitação da presença de brancos em território indígena, duas frentes de trabalho foram iniciadas: a Assistência Social passou a atender e encaminhar os pedidos de Benefícios de Prestação Continuada (BPC), para os que apresentavam múltiplas deficiências e necessitavam de cuidados por parte de seus familiares; e a Semed, após constatar a existência de índios surdos e cegos, também propôs uma nova fase na vida destes sujeitos: a inclusão na escola.
Alguns desses índios eram crianças; outros, adultos. Alguns nunca tinham freqüentado a escola e outros abandonaram os estudos devido à deficiência. Uma situação considerada comum, pois, se gundo Damázio (2007):
(...) as pessoas com surdez enfrentam inúmeros entraves para participar da educação escolar, decorrentes da perda da audição e da forma como se estruturam as propostas educacionais das escolas. Muitos alunos com surdez podem ser prejudicados pela falta de estímulos adequados ao seu potencial cognitivo, sócio-afetivo, lingüístico e político-cultural e ter perdas consideráveis no desenvolvimento da aprendizagem.
Além disso, seus próprios familiares entendiam que os mesmos não eram capazes de aprender ou que já tinham aprendido o suficiente. Mas, um diagnóstico revelou que aqueles que se diziam alfabetizados eram meros copistas do material dado em sala de aula.
O desafio foi garantir a todos o direito à alfabetização, independente de suas limitações. Sentimos, enquanto educadores, que nosso papel não seria tão somente o de ensinar, mas, acima de tudo, o de resgatar a auto-estima e mostrar aos alunos, às famílias e à própria escola que a surdez pode ser um limite físico, mas não significa incapacidade para aprender, pois todos têm capacidade de se desenvolver intelectualmente fazendo uso de outros códigos e dos sentidos remanescentes:
Para que o aprendizado seja completo e significativo é importante possibilitar a coleta de informação por meio dos sentidos remanescentes. (...) Lembramos que se torna necessário criar um ambiente que privilegia a convivência e a interação com diversos meios de acesso à leitura, à escrita e aos conteúdos escolares em geral. (SÁ, CAMPOS & SILVA, 2007)
Percebeu-se, então, que havia necessidade de se proporcionar recursos e pessoal especializados para o desenvolvimento pleno do processo ensino/aprendizagem ou superação e minimização das dificuldades desse processo. Além disso, também é necessário construir políticas e práticas educativo-pedagógicas que garantam uma melhor qualidade de ensino a todos os alunos com deficiência, independente de quem seja. Por isso, uma das frentes de intervenção da Coordenadoria de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação de Dourados é o ensino de LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais aos professores da Rede Municipal de Ensino, capacitando-os para o trabalho com alunos surdos, tanto como professores regentes quanto como professores intérpretes.
De acordo com a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, no art.1º parágrafo único,
(...) entende-se como Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, a forma de comunicação e expressão em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.
Destarte, para dar respaldo ao projeto, selecionou-se entre os vários professores que foram formados para ensinar em LIBRAS, os que já tinham certo contato com a alfabetização indígena. Eles se qualificaram e foram para as salas de aula das Escolas Agustinho e Tengatuí-Marangatú.
A princípio a aceitação dos professores-intérpretes pelos alunos surdos não foi satisfatória, principalmente na Escola Agustinho, composta por uma etnia que mantém suas tradições. Tais alunos se recusavam a aprender a LIBRAS e demonstravam essa repulsa por meio de atos agressivos. Para conquistar os alunos a professora-intérprete estabeleceu uma troca com eles: ela os ensinava os sinais em LIBRAS e eles a ensinavam o Guarani.
Com o passar do tempo, a interação entre ambos tornou-se positiva. As famílias indígenas perceberam a dimensão e a seriedade do projeto e levaram seus filhos de volta à escola. Foi o começo de um projeto de alfabetização, de quebra de preconceitos, de valorização profissional e pessoal.
No mesmo instante em que os professores índios ministravam aula para os demais alunos do ensino fundamental, os educadores não-índios repassavam os ensinamentos aos alunos com deficiência. Uma integração que deu certo e que vem mudando a vida de dezenas de índios surdos. Com um ano e seis meses de implantação do projeto já são dois alunos com surdez em processo de alfabetização e outros quatro já alfabetizados na Língua de Sinais e Língua Portuguesa. Essa é uma prova de que a educação pode mudar os rumos de uma sociedade.

Educação bilíngüe (ou trilíngüe?) – o grande desafio

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, 10% a 12% da população do Mato Grosso do Sul apresenta algum tipo de deficiência, ou seja, 250 mil habitantes (censo 2003). Desse quantitativo 2,3% são indígenas com deficiência; portanto, aproximadamente 250 índios têm surdez.
Esses dados causam uma grande preocupação, pois é preciso oportunizar aos índios surdos não apenas o ensino de LIBRAS, mas também o ensino de LIBRAS como “tradução” de uma língua para a outra, contextualizada com a cultura indígena. Em outras palavras, isso significa que para ensinar um sinal é preciso adequá-lo ao contexto indígena. Por exemplo: o sinal “tomar banho” é diferente nas diferentes culturas – em português é tomar banho no chuveiro; em Guarani é tomar banho de caneco; em Terena, é submergir em um lago.
Cabe, portanto, ao professor-intérprete a adequação lingüística e de sinais à cada cultura. Essa não é uma tarefa simples. Para, então, colaborar de forma mais eficaz com o professor-intérprete, a Semed tem buscado apoio em outras instituições, como a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis).
Além de ser um desafio a ser vencido, a adequação de LIBRAS às línguas e culturas existentes na Reserva de Dourados, garantir a aprendizagem (leitura e escrita) da língua indígena é primordial, pois, no âmbito da linguagem indígena, a língua é vista como uma questão de sobrevivência social ou cultural.
Enfim, o ensino de LIBRAS, que em sua essência já se constitui em um ensino bilíngüe, para índios constitui-se em um ensino trilíngüe, pois é a associação LIBRAS – Guarani-Kaiowá – Língua Portuguesa, ou, ainda, LIBRAS – Terena-Aruak – Língua Portuguesa; sem se considerar nessas relações os dialetos e as influências advindas da proximidade da Reserva Indígena com a cidade de Dourados.
Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Direito à educação: subsídios para a gestão dos sistemas educacionais. Orientações gerais e marcos legais. MEC/SEESP, 2004.
______. Lei nº 10.436 / 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Brasília/DF, 2002.
DAMÁZIO, Mirlene Ferreira Macedo. Atendimento Educacional Especializado – Pessoas com Surdez. SEESP/SEED/MEC. Brasília/DF, 2007.
SÁ, Elizabet Dias de; CAMPOS, Izilda Maria de; SILVA, Myriam Beatriz Capolina. Atendimento Educacional Especializado – Deficiência Visual. SEESP/SEED/MEC. Brasília/DF, 2007.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Censo Escolar. Dourados/MS, 2006.
BOLETIM BIBLIOGRÁFICO [do IBGE]. Dourados/MS. (consulta via telefone).

ENFOQUE 3 – Páginas 30 a 37

Letramento e inclusão social e escolar

Ana Beatriz Machado de Freitas – Psicopedagoga da APAE de Goiânia – Mestre em Psicologia, Área: Desenvolvimento Humano pela Universidade Católica de Goiás - UCG.
E-mail: bianadefreitas@ig.com.br

Resumo
O artigo discute a crescente importância social do letramento na atualidade, competência que transcende o ler e o escrever limitados à decodificação. O estrito domínio do código alfabético não tem sido suficiente para a formação de leitores/cidadãos críticos e hábeis quanto ao uso e possibilidades do idioma em contextos diversos. Convém, por outro lado, o alerta para que o ensino não recaia em interpretações teóricas e práticas extremas que supervalorizem o sujeito, sua construtividade e contexto, e negligenciem o conhecimento das propriedades do idioma. Cabem reflexões sobre a possível redefinição do conceito de alfabetização e esclarecimentos quanto aos princípios e práticas socioconstrutivistas. São discutidas, também, implicações da escola e da proposta de letramento no contexto da inclusão, especialmente em relação a alunos com deficiência mental ou sob suspeita de déficit cognitivo devido a dificuldades na aprendizagem do idioma – na leitura e escrita. Comenta-se a necessidade de repensar paradigmas na educação, sobretudo, quanto ao estabelecimento e legitimação de padrões que definem aprendizagem, alfabetização, deficiência e normalidade.
Palavras-chave: alfabetização, inclusão, deficiência.

Abstract
This article discusses the increasing social importance of the literacy in the present time, an ability that exceeds the reading and handwriting competence just to decode. The alphabetical code understanding, by itself, has not been enough for a critical readers/citizens formation; it doesn’t become them able to use the language in many contexts. The author adverts to educational practices and theoretical interpretations that overrate the subject, and his actions and context, but negligence the language with its knowledge and properties. Reflections are suggested about change in the alphabetization concept; socio-constructivist fundamentals and practices are also explained. The article discusses about school and literacy implications in the inclusion context, especially for pupils with mental disabilities or under this suspect because of difficulties during the language learning – to read and write. There is necessity to ponder paradigms, especially about the standardization in educational context and its use to define learning, alphabetizing, deficiency and normality.
Key words: alphabetizing, inclusion, deficiency.

Introdução

Na sociedade contemporânea, fundamentalmente centrada na escrita, ser alfabetizado não é mais suficiente para participação social plena. Mais do que decodificação e capacidade de grafar segundo normas gramaticais, é preciso que o sujeito saiba fazer uso dessas habilidades em situações distintas e diversificadas que o contexto requer. Tal competência é denominada letramento pelos lingüistas, termo derivado do inglês literacy. Uma das principais estudiosas brasileiras sobre essa questão Soares (2000, 2001, 2005) discute em seus escritos o conceito e a importância social do letramento.
Discorreremos a relação entre inclusão/exclusão e letramento no atual momento histórico, em particular, na realidade social e educacional brasileira. Nas últimas décadas configurou-se a chamada Pedagogia Crítica que caracterizou-se por transcender a discussão de métodos e técnicas; o enfoque principal passou a ser a reflexão quanto aos propósitos da educação, seu compromisso social e político (VEIGA, 1995). À medida que a Pedagogia começa a questionar seu papel frente a alunos reais (e não a modelos ideais), procura se redimir de sua história de excludência.
Na educação, a exemplo de outros setores da vida social, foi construído historicamente (e tem prevalecido) um padrão de normalidade quanto à estrutura e o funcionamento escolar e também quanto a um perfil de aluno que aprende normalmente. A não adaptação do educando aos parâmetros o desqualificariam da escola regular, caso dos alunos com deficiências, principalmente a mental, ou sob esta suspeita. Tal paradigma ainda é vigente, mesmo quando há serviços de apoio à inclusão na rede pública de ensino.
Entrevisto, diariamente, familiares que trazem seus filhos à instituição devido a queixas de não-aprendizagem, leia-se dificuldade de aprender ou produzir no mesmo ritmo ou da mesma maneira que o esperado. Avaliando esses alunos, constato que um número expressivo está em processo de alfabetização; entretanto, o quanto sabem é considerado insuficiente, sequer é considerado aprendizagem. Ao mesmo tempo, as exigências aumentam, tanto para o alunado dito sem deficiência quanto para os chamados especiais. Destes últimos, pede-se um mínimo de alfabetização; dos primeiros, cobra-se, além do ler e escrever, o letramento, a leitura crítica.
Dois alunados, dois padrões. Como a alfabetização e o letramento podem se constituir, de fato, inclusivos?

1. Inclusão e letramento na contemporaneidade

Chegamos ao século XXI vislumbrando o século passado como o grande centenário – e cenário – da tecnologia, da industrialização e das comunicações. O modo de produção capitalista se expandiu e se consolidou, estendendo–se nas últimas décadas ao hemisfério oriental, desde o declínio do socialismo soviético na ex-URSS e aos países do leste europeu.
A abertura do comércio aliada à expansão dos meios de comunicação de massa e da tecnologia computacional contribuiu para a aproximação entre os países, para o conhecimento mútuo da diversidade cultural divulgado ao vivo em transmissões via satélite. É como se o globo terrestre se congregasse no encurtamento de distâncias reais possibilitado pelo virtual, daí decorrendo a denominação aldeia global.
O mundo globalizado traz consigo a perspectiva da complexidade, a visão ecossistêmica de compreensão humana, ambiental, cultural e da vida como um todo. O mundo passa a ser entendido, conforme explicita Morin (1996), como uma totalidade dinâmica e complexa cujas partes – ambientes, seres vivos e inanimados, elementos naturais, culturas, sociedades, grupos, ideais etc – são interdependentes, co-construtoras mútuas, guardando, de algum modo, relação com o todo. O autor ressalta, contudo, que “cada parte conserva sua singularidade e individualidade” (MORIN, 1996, p. 275), do que inferimos a importância da diferença, da diversidade como constituinte da vida, no sentido mais amplo desse termo: do biológico ao cultural a vida só se enraíza e se desenvolve a partir e na relação com a diferença.
Nesse contexto, ganha visibilidade a idéia de inclusão. E se a inclusão ascende em debates, os considerados destoantes da maioria, por sua diferença, ganham, também, visibilidade, realidade. O chamado diferente não é mais uma categoria abstrata, mas um humano real; seu atributo implica humanidade. Diferenças existem entre todos, nos igualam como humanos e mutuamente nos incluem como tal. Nesse sentido concordamos na assertiva de que “a diferença é a absoluta comprovação da realidade. A grande tese, portanto, é a necessidade da inclusão da diferença como uma maneira de interpretar os significados da vida, a fim de que seja possível olhar o real em sua integralidade” (MENEGHETTI, 2004, p. 98).
Incluir implica abrir-se à com-vivência social e psicológica com aspectos que historicamente negamos, ocultamos ou delegamos menos-valia. Em relação a pessoas e a grupos populacionais marginalizados, a inclusão, pontua Rabelo (2005), supõe proporcionar todas as formas possíveis de acesso ao desenvolvimento, considerando as diferenças individuais, numa visão de acolhimento, respeito, igualdade de direitos e democracia. Dado a esse novo olhar, as minorias historicamente segregadas, como as mulheres, indígenas, negros, pobres e deficientes passam a ser alvo de políticas públicas de inclusão social. Nisso, a escola figura como uma das principais instituições da sociedade promotora desse processo, uma vez que lhe é delegada a responsabilidade pelo ensino sistematizado do conhecimento científico e competências, conceitos e habilidades culturalmente fundamentais à vida social.
A inclusão social passa pela inclusão escolar, ou melhor, é privilegiadamente constituída em seu espaço. Entretanto, como observa Almeida (2003, p.173), “infelizmente o conceito do aluno ‘padrão’ continua vigorando nas escolas, mesmo nas que se consideram inclusivas”. O próprio documento referencial do Ministério Público para educação inclusiva, O Acesso de Alunos com Deficiência às Escolas e Classes Comuns da Rede Regular (2004), admite que a maioria das escolas está distante desta perspectiva. As mudanças seguem parciais e ainda sob vias de atendimento segregado.
De fato, constatamos em nossa realidade educacional que a denominação inclusiva é, em geral, conferida às escolas que disponibilizam um professor de apoio cuja principal função é a de acompanhar/orientar, em classe, os alunos considerados especiais para que eles possam ter, de preferência, um desempenho próximo ao do padrão esperado. Trata-se, aí, de integração, e não realmente da inclusão. A integração, define Mantoan (2005, p.23), “pode ser entendida como ‘o especial na educação”. O sistema educacional não se modifica; continua a exigir um quantum de produtividade, prazo e competências fundamentais, dentre estas, notoriamente a leitura e a escrita.
A impossibilidade de ler e escrever acarreta considerável dependência e exclusão no mundo contemporâneo, já que é por esta via que as informações circulam em vertiginosa rapidez e abundância. A leitura se faz necessária, desde o nome da rua até a interpretação de documentos; escrever é preciso, desde um bilhete simples, critério utilizado pelo IBGE para identificar (ou não) o analfabetismo (SOARES, 2001) até a elaboração de um requerimento numa linguagem formal. Além disso, é crescente a diversidade de códigos comunicativos, como o da informática com uma gramática própria, além dos estrangeirismos, neologismos e palavras e expressões que entram ou saem da moda, conforme o movimento dos falantes, havendo especial influência dos meios de comunicação de massa. Nesse sentido, concordamos com Bakhtin (1990) para quem a língua (sistema lingüístico) é modificada e transformada pelos falantes conforme a dinâmica social.
Na atual realidade sociolingüística ser tecnicamente alfabetizado não basta. É preciso saber utilizar e usufruir das possibilidades e variabilidades da língua, lendo e escrevendo contextualmente nas diferentes situações em que o uso da palavra se apresenta e se faz necessário, de forma a alcançar compreensão e espírito crítico. A sociedade globalizada requer, cada vez mais, sujeitos capazes de navegar pelos diferentes meios e possibilidades da cultura letrada, exigência que tem suscitado mudanças no ensino e na própria concepção de alfabetização.
Soares faz uma importante distinção entre alfabetização e letramento: alfabetização é o domínio do código alfabético, a capacidade de decodificar e escrever segundo as normas e convenções da gramática de uma língua. Como requer uma aprendizagem sistemática, está relacionada a um conhecimento científico, cabendo formalmente à escola o seu ensino. Já o letramento é mais amplo e suas vias de aprendizado extrapolam os muros escolares. É na vida social, na diversidade de situações em que a escrita se faz presente e assume significados que o letramento se constitui, se transforma e se amplia. As descobertas, problemáticas e desafios suscitam releituras e, portanto, redefinem o uso, funções, práticas e possibilidades de sentidos da escrita (SOARES, 2000, 2001, 2005).
Os dois processos nem sempre coexistem, como veremos a seguir, e, hoje, a falta ou insuficiência do letramento, apresenta-se como problema mundial, inclusive nos países desenvolvidos, abrangendo normais e especiais.

2. Escola e letramento: inclusão?

Tradicionalmente, a ênfase da escola tem incidido na alfabetização, o que é compreensível tanto do ponto de vista histórico quanto do estritamente pedagógico. Sobre este último, cabe a consideração já explicitada: a alfabetização é uma competência sistemática e, mais ou menos fechada, concluída no domínio da técnica, ao passo que o letramento é um processo contínuo e permanentemente aberto. Nessa óptica, caberia à escola tão somente alfabetizar.
Quanto às razões históricas, a exigência do cidadão letrado é muito recente, prioritariamente as três últimas décadas, sobretudo, no Brasil. Influenciada pela psicologia comportamental, principalmente a norte-americana, que compreende a aprendizagem como resultado direto de respostas a estímulos, e por concepções de linguagem que entendem a leitura e a escrita como correspondência grafo-fônica (BRAGGIO, 1988), a pedagogia privilegiava o aprendizado mecânico da técnica, da decodificação em detrimento dos significados e das práticas e usos sociais do idioma.
A redemocratização na política brasileira nos anos 80 do século XX trouxe questionamentos quanto ao perfil de aluno, professor, escola e cidadão (VEIGA, 1995). Já não tinha sentido, em plena época de contestação e valorização dos direitos e ideais democráticos, uma educação repressora, domesticadora, voltada para a repetição de valores impostos. A escola deveria formar cidadãos ativos, críticos, participativos e autônomos para favorecer ações transformadoras da realidade social.
As teorias construtivista e socioconstrutivista, embasadas, respectivamente, por Jean Piaget e L.S. Vygotsky, além do resgate da pedagogia de educadores considerados subversivos na época ditatorial, como Paulo Freire, começaram a ser difundidas no meio educacional, pois vinham ao encontro dos anseios do momento político, por valorizarem o sujeito ativo, autor de sua aprendizagem.
Ferreiro (1985), em consonância com o construtivismo piagetiano, trouxe um novo paradigma à alfabetização: o aprendizado da escrita seria uma construção cognitiva e progressiva, mediante estágios sucessivos. Os erros (assim considerados do ponto de vista ortográfico) seriam etapas necessárias e lógicas do processo. O socioconstrutivismo, alicerçado nas contribuições de Vygotsky veio valorizar a importância do contexto, de elementos da cultura, da história e das relações sociais no favorecimento das construções cognitivas. A esse respeito destaca-se o conceito de mediação (VYGOTSKY, 1989), melhor dizendo, da aprendizagem mediada, que é proporcionada a partir de situações colaborativas.
A repercussão dessas teorias refletiu-se na ênfase aos significados e funções sociais da escrita na alfabetização. Ao professor caberia o papel de proporcionar um “ambiente alfabetizador” (SAMPAIO, 1992, p.31), isto é, situações de leitura e escrita contextualizadas, atividades que envolvessem, por exemplo, leitura de embalagens, estudo de letras de música, leitura de jornais, linguagem dos gibis, escrita de cartas, lista de compras.
Soares (2005) alerta que houve uma radical inversão: supervalorizou-se o sujeito pensante e foram esquecidas as propriedades do objeto a ser construído, no caso, a especificidade lingüística do código escrito, as normas específicas da língua, cujo aprendizado depende, fundamentalmente, do ensino escolar (ex. regras ortográficas, convenções, escrita no padrão considerado culto gramaticalmente). Nesse sentido, é como se o letramento se sobrepusesse à alfabetização: não importaria tanto saber decodificar a escrita nem grafar segundo normas da gramática; o que valeria é o conhecimento de mundo, o saber para quê a escrita serve, onde e como ela se apresenta. Quanto à leitura, importaria muito mais o processo e o significado atribuído pelo aluno (autor/leitor). Formam-se, nesse raciocínio, letrados não alfabetizados, o que, ponderamos, é tão excludente quanto o seu inverso.
A escola, como espaço social, deve promover o letramento sem se esquecer de seu papel alfabetizador. A sociedade reclama cidadãos cada vez mais informados e, o que é mais difícil, formados quanto à leitura crítica da palavra e do mundo; parafraseando Paulo Freire, da “palavramundo” (FREIRE,1992, p.12). A compreensão crítica das informações e, concomitantemente, o domínio técnico do idioma corroboram a formação cidadã e a afirmação de identidades e diferenças, o que comunga com a perspectiva inclusiva. Afinal,
Se a igualdade é referência, podemos inventar o que quisermos para agrupar e rotular os alunos como PNEE, como deficientes. Mas, se a diferença é tomada como parâmetro, não fixamos mais a igualdade como norma e fazemos cair toda uma hierarquia de igualdades e diferenças que sustentam a ‘normalização’ [...]. Contrariar a perspectiva de uma escola que se pauta pela igualdade de oportunidades é fazer a diferença, é reconhecê-la e valorizá-la (MANTOAN, 2005, p.32-33).

Entendemos por oportunizar na educação creditar ao outro, independente da dificuldade ou deficiência, possibilidade de aprender e de expressar o saber, estando o educador presente como mediador. A esse respeito é ilustrativo o trabalho de Padilha (2001). Esta pesquisadora-educadora acompanhou por três anos, exercendo intervenção pedagógica sistemática, uma jovem com deficiência mental decorrente de lesão cerebral; no caso, agenesia do corpo caloso (ausência da estrutura que liga os hemisférios cerebrais) e hemisfério esquerdo diminuído. O histórico da aluna era de fracasso na aprendizagem, tanto acadêmica quanto funcional (atividades gerais da vida diária).
A jovem Bianca, sob a referida intervenção, conseguiu avanços significativos em um dos planos em que mais apresentava comprometimento: o simbólico. Não foi imposto à aluna um conjunto de técnicas ou método. A educadora oportunizou sua participação em situações socioculturais das quais a jovem, até então, era normalmente (por sua condição de deficiente) excluída. Das vivências, elementos diversos serviram à pedagogia, à expressão semiótica, à construção do pensamento e da linguagem e de significações acerca de si e do mundo. Houve, pois, como perspectiva (Vygotsky/1989) aprendizagem geradora de desenvolvimento.
Compreendemos no processo de Bianca o desenvolver e o aprendizado da linguagem pela perspectiva do letramento, visto que valorizou-se a constituição do sujeito simbólico e lingüístico (e incluímos como linguagem, além da fala, o gesto, o desenho, a corporeidade) mediante inserção e interações em um universo cultural, na relação com os significados. Os conteúdos escolares, que antes aborreciam a jovem, passaram a constituir significação, uso pessoal e social, e alicerçaram construções cognitivas e também afetivas com o conhecimento.
“A lesão cerebral é uma evidência. O cérebro faz parte do real e não pode ser compreendido sem a mediação do signo. Mas, os modelos explicativos parecem não dar conta da compreensão dessa mediação. A própria noção de cérebro tem um sentido construído” (PADILHA, 2001, p.29).
Ajudar a construir, mediar, oportunizar. Este é o papel ensinante. Quanto à aprendizagem:
Não sabemos de antemão como e quanto alguém será capaz de aprender e por que meios alguém chegará a ser um pensador, um artista, um profissional, um artesão, um trabalhador, enfim. Nem a partir de que encontros com o outro e com a vida, com os fatos, alguém se pôs a pensar, a distinguir, a definir um caminho para a sua existência (MANTOAN, 2004, p.83-84).

Conclusão

Para a participação plena e autônoma na sociedade não bastam a leitura e a escrita sem entendimento; tampouco é suficiente um letramento vasto sem a competência técnica para assinar documentos, preencher cheques, redigir um requerimento, ler embalagens e bulas etc. O desafio atual da escola como possibilitadora e comprometida com a inclusão social é alfabetizar e letrar, concomitantemente, sem que nenhum dos dois processos se dilua. O socioconstrutivismo, exatamente por valorizar a aprendizagem construída em contexto, a partir de situações e relações sociais significativas, apresenta-se teoricamente coerente à articulação dos dois processos.
Infelizmente, interpretações teóricas equivocadas resultam em práticas de ensino extremistas que, como qualquer radicalismo, acarretam exclusão. Extrapola os objetivos deste artigo o detalhamento e a problematização desses equívocos na relação teoria-prática. Cabe, no entanto, salientar (e esclarecer) dois dos mais comuns diretamente implicados no ensino da língua materna:
a) o socioconstrutivismo aboliria atividades consideradas mecânicas, tais como: cópia, o ensino da gramática, a correspondência grafia-fonema, as tarefas de fixação (exercícios);
b) se os tipos de textos utilizados devem ser significativos para o aluno, conclui-se que somente a escrita veiculada no seu cotidiano deveria ser ensinada.
Na realidade, o que não se pode perder de vista é que “qualquer aprendizagem só se dá, de fato, quando o sentido está presente” (SAMPAIO, 1992, p. 39). A cópia, os exercícios, a correspondência letra-fonema e a gramática não são atividades mecânicas em si mesmas; fazem parte do ensino e são importantes à aprendizagem, desde que partam de situações em que a leitura e a escrita se apresentem contextualizadas e significativas.
Sobre o segundo ponto, cabe reafirmar a responsabilidade da escola com o conhecimento formal. Detendo-se no senso comum ou no saber assistemático, a instituição perderia sua finalidade e compromisso. As competências, o saber e o contexto de letramento do aluno devem ser valorizados como pontos de partida significativos para novas aprendizagens, devendo ser, necessariamente, ampliados e sistematizados, inclusive, no que concerne ao domínio das convenções lingüísticas, de modo que a escola se faça inclusiva no seu papel formativo/educador e social.
É provável que à luz do paradigma socioconstrutivista o próprio conceito de alfabetização se redefina como aprendizagem que necessariamente decorra e implique letramento no contexto das diferenças (sociais e lingüísticas), voltada e comprometida com a inclusão - educacional e social.
Entendemos que a perspectiva do letramento aponta-se em consonância com a inclusão, uma vez que a compreensão e o uso crítico, criativo e construtivo do idioma favorecem a autonomia, a requisição de direitos, a conquista de possibilidades, e amplia os horizontes da comunicação. No entanto, se um certo nível de letramento for adotado como padrão a ser alcançado em determinado tempo, por determinada faixa etária e ano escolar, incorreremos no mesmo paradigma de excludência: os letrados ganham o status de normalidade, enquanto os demais tornam-se aqueles com necessidades educacionais especiais, no caso, necessitados de um capital ou quantum lingüístico. A esse respeito Soares (1987) já tecia críticas na década de 1980: o argumento da carência de capital lingüístico não raro serve à reafirmação da marginalidade dos já excluídos socialmente por seu vocabulário e fala dissonantes do padrão legitimado culto.
Na atualidade, alertamos também para o risco de marginalização semelhante sob afirmações ou levantamento de suspeitas de deficiência mental devido à insuficiência de letramento. Definir deficiência mental, dificuldade de aprendizagem e/ou déficit cognitivo é tarefa delicada, extremamente complexa. Os critérios diagnósticos, ou de avaliação, assentam-se em pressupostos jamais neutros nem a-históricos. A alfabetização tem um valor social e, como tal, seu maior ou menor domínio acarreta inclusões/exclusões. Tomá-la como competência para definir normalidade/deficiência desconsiderando o contexto e a qualidade das situações de letramento e desconsiderando as relações na escola e os parâmetros que sustentam critérios avaliativos e fundamentam queixas pode legitimar diagnósticos e avaliações distorcidas que ratificam defasagens e compreendem-nas como problema meramente individual.
Ao discutir a questão do déficit cognitivo na realidade educacional brasileira, Araújo (1998) assinala que:
[...] o trabalho com problemas de aprendizagem na escola e com o déficit cognitivo passa necessariamente pela busca de uma não homegeneização da escola, ou seja, pela tomada de consciência de que se devem transformar os princípios sobre os quais se assentam as relações no interior da escola, aqui incluído o seu modus operandi e a formação de profissionais (ARAÚJO, 1998, p.44).
Acrescentamos que o desafio é pessoal, profissional e institucional, mas também sistêmico; diz respeito à transformação paradigmática, a questionamentos e mudanças de concepções, práticas, compromissos e sentidos de escola, educação e aprender-ensinar.

Referências

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Vygotsky, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

ENFOQUE 4 – Páginas 38 a 45

Incluir Brincando

Marta Dischinger – PhD, professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PósARQ)
E-mail: martadischinger@gmail.com

Aline Eyng Savi
E-Mail: arq.alinesavi@brturbo.com.br
Leonora Cristina da Silva
E-mail: leonora_arq@hotmail.com
Carolina Vieira Innecco
E-mail: carolina.innecco@gmail.com
Arquitetas e Urbanistas, mestrandas em Arquitetura e Urbanismo/UFSC.

Resumo
Este artigo apresenta um estudo sobre atividades lúdicas, realizado na Escola Básica Donícia Maria da Costa e desenvolvido na disciplina Design Inclusivo, do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina. O trabalho tem como foco a elaboração de um parque infantil, com brinquedos que promovam a inclusão das crianças, pois se considera a escola fundamental na formação da cidadania. Foi desenvolvido um processo de avaliação das condições específicas para o parque infantil, por meio de Revisão Bibliográfica, Visitas Exploratórias e Entrevistas Focalizadas, resultando em quadros que auxiliaram na definição das condicionantes para a elaboração do projeto de um novo parque. A aplicação deste procedimento permitiu pensar nas diferenças humanas e potencializar as capacidades do indivíduo na apropriação do espaço.
Palavras-chave: educação inclusiva, design inclusivo, parque infantil, acessibilidade.

Abstract
This paper presents a study about playful activities at the Primary School “Donícia Maria da Costa” that was. developed in the discipline Inclusive Design, of the Architecture and Urbanism Postgraduate Program at the Federal University of Santa Catarina. The work focuses on a playground design with equipments that can promote children’s inclusion. It considers the relevance of the school role for a citizenship education, including play as a cooperative process. An evaluation of the playground specific conditions was developed, through Bibliographical Revision, Exploratory Visits and Focused Interviews. This evaluation resulted in tables that supported the definition of design parameters for the design of a new playground. The application of this procedure allowed a reflection about human differences and how to increase individual capacities in the appropriation of space.
Key words: inclusive education, inclusive design, playground, accessibility.

Introdução

Assim como a saúde, o transporte e o trabalho, a educação e o lazer também são direitos básicos de todos os cidadãos. É fundamental iniciar a participação da criança na vida em sociedade, e a escola constitui-se no primeiro espaço para isso, pois ensina os direitos, os deveres, o respeito ao próximo e o reconhecimento das diferenças humanas. Para o cumprimento e legalização de tais princípios de igualdade, a partir de 1996 passou a ser obrigatória a inclusão de alunos com restrições na rede de ensino regular no Brasil, com a aprovação da “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional” (Lei nº. 9.394). Além desta, a Lei nº. 10.098/2000 e o Decreto Federal nº. 5.296/2004 garantem a acessibilidade espacial desses alunos aos edifícios escolares.
No contexto escolar, a acessibilidade espacial é importante durante toda a rota percorrida pelo aluno, ou seja, desde a saída da sua casa até a sala de aula, possibilitando, além do acesso a todos os ambientes escolares (por exemplo, à biblioteca e ao refeitório), a total participação nas atividades. No entanto, as atividades ligadas à socialização dos alunos com deficiência, tais como a recreação, ocupam, muitas vezes, um plano secundário na busca das melhores condições de acessibilidade espacial.
Assim, durante o desenvolvimento da disciplina de Design Inclusivo, ministrada pela professora Marta Dischinger no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PósARQ) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi elaborado um projeto em cooperação com a Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis para a área de lazer da Escola Básica Donícia Maria da Costa, face à necessidade de se criar aos alunos com deficiências, condições para o entretenimento e prática de esportes.
Localizada no bairro do Saco Grande, numa área residencial distante cerca de oito quilômetros do centro de Florianópolis, Santa Catarina, essa escola é considerada modelo, por ser um projeto padrão desenvolvido pela Prefeitura Municipal e por seguir a NBR 9050/97. A edificação foi construída em 2001, num terreno plano e possui num único bloco de dois pavimentos, todas as salas de aula e funções administrativas
(Figura 1: Vista aérea do terreno da escola. Fonte: Google Earth, 2007.).
(Figura 2: Figura 2: Vista da entrada principal da Escola. Fonte: Escola Básica Donícia Maria da Costa, 2007.
Há turmas em três turnos (matutino, vespertino e noturno) distribuídas entre a 1ª e 9ª séries do ensino fundamental, totalizando 512 alunos. Destes, durante o período de pesquisa, onze possuíam algum tipo de deficiência, abrangendo a área motora, auditiva, visual, mental e múltipla.
A pesquisa realizada na disciplina de Design Inclusivo para executar o projeto desse novo parque infantil atende tanto às questões de acessibilidade do espaço quanto ao Design Inclusivo. No entanto, este artigo terá como foco principal o processo de projeto e a confecção dos brinquedos que compõem o parque infantil. Pretende-se, ainda, apresentar além dos resultados concretos obtidos, a metodologia empregada, assim como questões e condicionantes que surgiram durante a realização da análise do objeto de estudo e ao longo do processo de projeto.

Por que um parque infantil inclusivo?

A escola por ser considerada,
[...] elemento estruturador da vida coletiva de uma comunidade. Por sua função de formar cidadãos, seu ambiente deve possuir características que a tornem realmente universal e inclusiva, atendendo a todos independente das restrições de seus usuários (BINS ELY; DISCHINGER; PADARATZ, 2003).
Essa inclusão reivindica a noção de pertencer, ocupar e vivenciar o locus. Permitir a inclusão implica numa série de ações combinatórias. Desde chegar a algum lugar de forma independente, segura e confortável; entender a organização e as relações estabelecidas nos lugares; até participar de todas as atividades que ali se desenvolvem.
Dos inúmeros espaços físicos existentes, a escola é um dos principais. Porque é um agente socializador, formada por um conjunto de espaços no qual a criança interage. É responsável não apenas pela difusão de conhecimentos, mas pela transmissão de valores culturais e de cidadania.
Nesse contexto, o ambiente lúdico escolar pode constituir-se num elemento importante para o ensino, pois é uma das principais atividades infantis e nela são construídas as capacidades e potencialidades da criança.
Afinal, segundo Vygotsky (1999, p.109), “[...] é enorme a influência do brinquedo no desenvolvimento de uma criança. É no brinquedo que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, dependendo das motivações e tendências internas [...]”.
Ao brincar, há o desenvolvimento do corpo e, principalmente, da mente. A criança demonstra e representa o que gostaria de ser, expressando a sua criatividade. Os espaços destinados ao brincar devem, então, estimular a imaginação, a fantasia e a compreensão do mundo (seus valores, conceitos, regras e limites).
Pela importância do ato de brincar na educação infantil, o projeto inclusivo tem assumido cada vez maior importância na delimitação dos ambientes destinados à educação infantil. Tais locais permitem às crianças desenvolverem a psicomotricidade ampla (e.g. correr, pular, exercitar-se), participar de jogos ativos e estabelecer os primeiros conceitos de cidadania e respeito às diferenças humanas.
A partir de tais princípios e acreditando que as maiores aquisições de uma criança são conseguidas no brinquedo (aqui compreendido de forma genérica como o ato de brincar) e que estas no futuro tornar-se-ão o nível básico de ação real e moralidade infantil, é que todos os questionamentos, análises, e ações de projetos foram desenvolvidos.

Como responder ao questionamento principal?

Com o intuito de responder à pergunta de projeto, motivada pela primeira visita à Escola: “Como elaborar um espaço lúdico (parque infantil) que promova a inclusão?” e, assim, avaliar as atividades e ações a serem consideradas, foi desenvolvida na Escola uma Avaliação Pós-ocupação (ORNSTEIN, 1992), também conhecida pela sigla APO. O método permitiu conhecer as variáveis prioritárias do estudo de caso e definir os critérios para gerenciar o controle de qualidade do ambiente construído.
De acordo com a especificidade do estudo, foram utilizados diferentes métodos e instrumentos combinados. Inicialmente, foi realizada uma Revisão Bibliográfica que visou caracterizar o objeto e os usuários do estudo, buscando informações em fontes secundárias, nacionais e internacionais, tanto impressas quanto em mídia eletrônica, referentes ao aprofundamento dos conceitos de Design Inclusivo, parques infantis, acessibilidade espacial, deficiências e restrições, e sentidos humanos. Esse conhecimento serviu de base para a avaliação geral da Escola e para a elaboração dos brinquedos do novo parque infantil.
Após os estudos iniciais, realizaram-se as Visitas Exploratórias com a participação de toda a equipe para o reconhecimento do objeto de pesquisa. As visitas serviram para a observação dos aspectos relevantes à acessibilidade espacial, rotina de uso e às principais necessidades dos usuários (crianças). A equipe utilizou as técnicas de registro fotográfico e escrito (tópicos) que, posteriormente, serviram para sistematizar as etapas seguintes e construir os quadros de observação e discussão dos problemas de toda a escola, com caracterização dos aspectos positivos e negativos.
Junto às Visitas foram realizadas Entrevistas não-estruturadas (MARCONI; LAKATOS, 1990). Tal método permitiu maior liberdade do entrevistado em responder às perguntas numa conversa informal. O roteiro de tópicos pré-estabelecidos foi o seguinte: as metas e os objetivos do espaço; as idades das crianças; os tipos de restrições; a descrição da rotina de uso; as atividades ali desenvolvidas, e o ambiente em que gostariam que houvesse uma reforma.
Os métodos aplicados responderam diretamente à questão de pesquisa e auxiliaram na definição do problema central – pátio externo sem tratamento arquitetônico e paisagístico, não permitindo atividades de entretenimento e de Educação Física – assim como o âmbito de intervenção – crianças de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental, com faixa etária (aproximada) de 7 a 10 anos, independente da condição da restrição e/ou deficiência.

Como é o objeto de estudo?

A infra-estrutura da Escola pode ser considerada boa se comparada às demais escolas públicas do município em que está instalada. Pois apresenta ambientes internos adequados às atividades que desempenham, com boas dimensões, qualidade nos acabamentos, nos acessos e nas circulações. Entretanto, a área externa apresenta muitos pontos negativos, principalmente em relação à acessibilidade espacial e à ausência de tratamento arquitetônico e paisagístico
(Figura 3: Vista da quadra de esportes, nota-se ausência de tratamento paisagístico, mobiliário e de piso regular. Fonte: Autoras, 2007).
(Figura 4: Vista do pátio externo, nota-se que não há equipamentos para as acomodações dos alunos nos intervalos de aula e nas atividades de Educação Física. O piso (brita) e a ausência de passeios dificultam o acesso de cadeirantes e a ausência de referenciais fixos prejudica o trajeto seguro dos deficientes visuais.Fonte: Autoras, 2007).
O piso em brita e a ausência de equipamentos e vegetação tornam o pátio externo inóspito, limitando as atividades e o acesso dos alunos durante o intervalo e nas aulas de Educação Física. Além disso, esse espaço é reduzido, não é acessível e está em péssimas condições de uso
(Figura 5: Vista do parque infantil, nota-se que a área não recebe insolação adequada, o piso é irregular (brita) e o degrau dificulta o acesso de deficientes, principalmente os cadeirantes. Fonte: Autoras, 2007).
(Figura 6: Vista do parque infantil, nota-se o portão e a cerca (tipo galinheiro), os brinquedos padronizados e o piso (grama) que dificulta o acesso de cadeirantes. Fonte: Autoras, 2007).

Então, realizadas as Visitas Exploratórias e a Revisão Bibliográfica, elaborou-se um zoneamento e uma proposta de um novo parque com a locação de equipamentos e paisagismo, de forma que o pátio externo pudesse ganhar vida e tornar-se um ambiente agradável. Optou-se por locar o novo parque numa área ampla, que atualmente é usada, ocasionalmente, apenas pelo professor de Educação Física
(Figura 7: Vista do local de implantação do novo parque infantil. Fonte: Autoras, 2007).
(Figura 8: Planta-baixa da implantação proposta, com destaque para a área destinada ao novo parque infantil. Fonte: Autoras, 2007).


Assim, buscou-se criar um parque infantil livre de barreiras físicas, permitindo que todos os usuários, independente do tipo de deficiência ou restrição, pudessem compreendê-lo, deslocarem-se e, principalmente, brincarem com autonomia, segurança e igualdade de condições.

Qual o resultado obtido?

Durante as Visitas e as Entrevistas foram identificadas três condicionantes que definiram as ações de projeto, são elas:
a) O estudo realizado tem suas propostas baseadas em alternativas viáveis economicamente, visto que a Escola e a Secretaria Municipal mostraram-se interessadas na implantação do projeto;
b) O projeto deve prever soluções construtivas rápidas, resultados imediatos com o uso de técnicas simples e materiais reaproveitados e conseguidos por doações, além da fácil manutenção;
c) Pouco tempo da equipe para desenvolvimento do estudo e do projeto.
Com essas condicionantes, o Partido Geral do projeto do parque infantil foi definido a partir de um conceito amplo da inclusão como promotor de desenvolvimento, construção de conhecimentos e sensações, autonomia e cooperação. Então, consideraram-se os diferentes tipos de usuários, suas restrições e deficiências e trabalhou-se na valorização das potencialidades e habilidades das crianças, por meio da criação de estímulos para os diferentes sentidos (classificação segundo GIBSON, 1966). Conseqüentemente, os brinquedos propostos têm o intuito de proporcionar além de um espaço lúdico, atividades de estimulação e de reabilitação.
O tema central escolhido foi uma via férrea, formando um circuito de aventuras, estimulante à autonomia e cooperação das crianças (Figura 9: Implantação do novo parque infantil, visualização do circuito temático. Fonte: Autoras, 2007), em que cada vagão foi definido como um brinquedo promotor de alguns dos sentidos: orientação, háptico, auditivo, visual, olfativo; configurando um circuito de aventuras. Segundo Goltsman (1992, p.14-20, tradução nossa),

Os ambientes devem expor os usuários à enorme gama de cores, odores, texturas, formas, tamanhos, sons, objetos, materiais, interações, pessoas, clima, tempo, espaço, movimento, e mudanças. [...] Especialmente para crianças com restrições sensoriais, os ambientes de brincadeira devem enfatizar todos os sentidos: paladar, tato, visão, olfato e audição. Os lugares devem ser planejados e os cenários projetados para estimular o desenvolvimento de todos os sentidos.

Foram desenvolvidos quadros onde cada brinquedo teve suas funções separadas e suas ações ao brincar, catalogadas. Os quadros permitiram o enriquecimento dos brinquedos inicialmente projetados, além de possibilitarem o surgimento de novas condicionantes de projeto, que direcionaram o aperfeiçoamento dos mesmos, para que uma gama maior de sentidos fosse estimulada. As duas últimas colunas elucidam as deficiências trabalhadas e os sentidos estimulados, em conformidade com o partido geral do projeto de proporcionar um espaço lúdico e de reabilitação sem estereótipos. Abaixo segue o Quadro 1, criado para a Maria-Fumaça (primeiro brinquedo do circuito)

(Quadro 1: Descrição das atividades, deficiências e sentidos a serem estimulados pelo brinquedo Maria-Fumaça. Fonte: Autoras, 2007).

Nome do brinquedo
Túnel – Coordenação motora grossa e força para andar, pular, correr e subir no aparelho; ver os contrastes de cor (diferença entre claro e escuro); sentir a textura do material; ouvir sons internos e externos ao túnel; compreender os limites do espaço;
Deficiência
Físico-Motora, Cognitiva, Visual, Auditiva e Múltipla.
Sentidos (GIBSON, 1966)
Orientação, Háptico, Auditivo, Visual.

Nome do brinquedo
Chaminé – Ouvir; falar; sentir a vibração do som, a textura e a temperatura do material;
Deficiência
Cognitiva, Visual, Auditiva e Múltipla.
Sentidos (GIBSON, 1966)
Háptico, Auditivo, Visual.

Nome do brinquedo
Recortes e encaixes – Sentir, compreender e distinguir a textura e as diferentes formas dos materiais e dos recortes; coordenação motora grossa e força para subir, pegar e encaixar os brinquedos; treinar a percepção entre dentro e fora, em cima e embaixo; treinar a relação mão – olho e a coordenação motora fina;
Deficiência
Físico-Motora, Cognitiva, Visual, Auditiva e Múltipla.
Sentidos (GIBSON, 1966)
Orientação, Háptico, Visual.

Nome do brinquedo
Teatro de Fantoches – Ouvir; ver e sentir as diferentes texturas e formas dos fantoches; treinar a percepção entre dentro e fora, em cima e embaixo; interpretar e reconhecer os significados dos diferentes personagens; treinar a relação mão – olho e a coordenação motora fina;
Deficiência
Físico-Motora, Cognitiva, Visual, Auditiva e Múltipla.
Sentidos (GIBSON, 1966)
Orientação, Háptico, Auditivo, Visual.

(Figura 10: Maquete da Maria-Fumaça, primeiro brinquedo do circuito temático. A escala utilizada foi 1:25. Fonte: Autoras, 2007).
(Figura 11: Elevação lateral da Maria-Fumaça. Fonte: Autoras, 2007).

Quais as reflexões e críticas finais?

Na escola, como em qualquer outro espaço construído, um ambiente acessível é aquele que pode ser facilmente compreendido, que permite ao usuário seu deslocamento e a participação com segurança, conforto e autonomia nas diversas atividades nele realizadas. Para possibilitar o projeto de um parque infantil acessível, de acordo com esses princípios, é fundamental obter conhecimento detalhado das capacidades e limitações apresentadas pelos usuários. Assim, o estudo dos problemas enfrentados na Escola pelas crianças com deficiências e o estudo teórico sobre estimulação e reabilitação, permitiram a definição de uma idéia central de projeto, com programas detalhados para cada brinquedo.
O processo de projeto permitiu atingir o objetivo central do estudo, que era propiciar a realização de atividades em que houvesse o maior número possível de estímulos aos sentidos, trabalhando as diversas deficiências, por meio do favorecimento, da cooperação e da integração entre as crianças, potencializando as diferentes capacidades de cada uma. Buscou-se, então, evidenciar a idéia de que todos podem brincar juntos.
O estudo realizado pôde, além disso, confirmar a triste realidade da maioria das escolas brasileiras, onde apesar dos esforços do corpo administrativo e docente, há uma grande carência de ambientes inclusivos e nisso enquadram-se as áreas externas das escolas e os parques infantis. Estes são inexistentes ou ineficientes (quando possuem brinquedos padronizados) e ignoram a importância do brincar para o despertar da consciência de cidadania e para o ensinamento da convivência num coletivo diversificado.
A experiência de projeto comprovou que ações simples, com materiais de baixo custo, podem ser realizadas mesmo em espaços reduzidos. Assim, essas ações, aliadas a uma filosofia pedagógica adequada, podem proporcionar espaços participativos, universais e aptos a promover uma educação inclusiva.
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